terça-feira, 25 de setembro de 2007

PÁGINAS SOLTAS DE UM DIÁRIO NUNCA ESCRITO


Imagem tirada da net



Há muitos anos atrás, meu pai vivia o esplendor de uma vida de comerciante bem sucedida na cidade de Lisboa que acolhia todos aqueles que a ela rumavam por força da falta de emprego e de soluções que a juventude de então sentia, oriunda da província onde a falta de meios era gritante.

Foi assim que, à custa de muito sangue suor e lágrimas, meu pai singrou na vida com a ajuda indispensável de minha mãe. Faziam um casal feliz à sua maneira, guerreando dia após dia como o gato e o rato, mas que aprendi a reconhecer como a forma que tinham encontrado para serem um casal uno e indivísivel.

Ao seu negócio dos texteis-lar, meu pai dedicava o seu tempo como de um filho se tratasse e disso nunca tive ciúmes. Era a sua vida e as lojas que possuía eram as suas meninas, para além das minhas duas irmãs que sempre fizeram questão de usufruir claramente desse direito, sem nunca terem conseguído beliscar essa tremenda relação que meu pai tinha com as suas lojas, as meninas dos seus olhos.

Fomos de facto uma família inteiramente feliz. Cada um de nós trilhou os caminhos que entendeu serem os melhores, mas a vida de então marcou-nos para o resto das nossas vidas.

Acompanhei meu pai inúmeras vezes, era eu ainda criança, para o seu local de trabalho e chegada a hora do lanche, recordo com saudade as vezes que ele me chamava, e me dizia:

- Tó, vamos lanchar!

Empoleirado quase sempre em cima de caixas e caixas de mercadoria, delas saltava como um passarinho para com ele ir comer uma sandes de presunto e um copinho de gasosa que repartíamos pelos dois, ali na tasca do Galego que ficava perto do seu negócio. Tempos difíceis, mas que não voltam mais.

Sabiam-me melhor aqueles lanches que muitos banquetes que me pudessem ofertar.

Foi assim, durante anos e anos, felizmente.

Uma bela manhã, já eu era adulto e de família constituída, meu pai chegado à loja a meio da manhã, que a saúde já não dava para muito, resolveu chamar-me como tantas vezes o fizera, e disse-me:

- Tó, ( para os nossos pais seremos sempre os eternos garotos ), anda daí comigo que eu quero ir comprar uma coisa contigo e preciso da tua opinião.

Sem mais delongas, apresentei-me à porta pronto a ajudar o meu pai numa compra que nem sabia o que seria, mas que só o facto de querer saber a minha opinião já era mais que importante.

E lá fomos, em direcção ao Rossio, os dois em amena cavaqueira, comprar o que durante a noite lhe veio em sonho. Um crucifixo para pôr ao peito num fio de ouro que minha mãe lhe tinha oferecido, com o dinheiro dele claro, que uma simples dona de casa não tinha vencimento. Não tinha como não tem.

Já lá vão mais de 30 anos que este episódio se deu. Meus pais já partiram para um descanso mais que merecido, embora muito antecipado para o que nós filhos pretendíamos.

Tempos antes dessa despedida, meu pai quis ter uma conversa comigo, simples mas cheia de sentimento e significado para ele. Não era nada de especial o que pretendia dizer-me, apenas me queria dar o tal crucifixo que eu o ajudara a comprar anos antes. Creio que já nessa altura o seu pensamento era esse.

Desde então nunca mais o tirei do peito, e dele só sai de noite para que o sono não seja interrompido pelo incómodo que é dormir de fio no pescoço.

Estas férias, como deixei escrito numa das minhas crónicas, voltei a ficar em casa dos meus primos em Moledo, no Alto Minho.

Chegada a noite, o ritual do tirar o relógio do pulso e o fio do pescoço manteve-se,
por isso, repousam sempre ao meu lado, em cima da mesinha de cabeceira até de manhã.

Como gosto de ler, normalmente faço-me acompanhar para a cama de um qualquer livro que me ajude a encontar o sono. E foi o que aconteceu mais uma vez.

Porém, na manhã do dia de regresso a casa, o meu fio e o crucifixo que sempre me acompanharam, ficaram debaixo do pequeno livro que tinha lido na noite anterior.

Foi assim que sem dar por isso, me separei de uma coisa sagrada, da qual dei falta a meio da viagem de regresso. Um rápido telefonema resolveu a situação e meus primos assumiram então trazer-mo uma vez que viriam a minha casa brevemente.

Chegaram no domingo passado, e com eles veio o meu crucifixo, o meu elo de ligação a meu pai.

Quero dizer-vos, que tanta prosa serviu para vos comunicar que hoje voltei a ser um homem completo!

José Gonçalves

14 comentários:

Ernesto Feliciano disse...

Amigo José,

Olho para o texto e para o título, e acho-o completamente adequado.

E estou à espera da continuação desse diária.

Este sua "introdução" é simplesmente bela.

Um abraço.

Anónimo disse...

Querido Amigo,
Gostei especialmente deste teu post, pois fiquei a conhecer-te melhor! E depois, a forma como o fazes - muita ternura e amor.
O teu pai devia de ser uma pessoa bastante interessante e também um homem com o chamado sentido de familia, que hoje em dia vai rareando. E ele, lógicamente a mãe tambem, passaram-te o testemunho, pois sei o valor que a familia tem para ti.
Percebo que esse crucifixo tenha um valor muito especial e é como que ter um "quentinho" junto ao peito...
Desejo que esse Cristo te continue a proteger e a dar forças para continuares a ser o grande (de coração) Homem que és.
Muitos beijinhos

António Inglês disse...

Olá Ernesto

Agradeço-lhe o simpático comentário.
Vamos ver se encontro mais páginas mas como sabe o meu "amigo alemão" não mo permite.
Um abraço
José Gonçalves

António Inglês disse...

Querida amiga

Escrevi este texto, porque deixei que a minha memória se aliasse a um facto que para mim era actual. A separação deste meu crucifixo que me trouxe angustiado alguns dias.
Tudo se compôs, até que recebi este teu comentário e confesso-te que me fizeste chegar uma lágrimazita ao canto do olho.
Eu sou além do mais um sentimentalão incurável.
Beijo muito grande amiga pela bondade das tuas palavras que calaram este teu amigo.
José Gonçalves

Elvira Carvalho disse...

José: dei uma espreitadela esta tarde na sua casa mas como estava com pressa, pois ia sair, não disse nada. Agora aqui estou.
Para lhe dizer que adorei este post, cheio de terna saudade, de lindas recordações. Sou um bocado chorona e rasaram-se-me os olhos de água.
E queria você deixar de escrever!
Um abraço

Eu não disse que ia deixar de comentar. Eu disse que alguns dias poderia não ter tempo. Mas ainda que isso venha a acontecer (ainda estou a organizar o meu tempo) não deixarei de passar todos os dias.
Um abraço

Isamar disse...

Olá, Zé (Tó)!

Esta página de um diário nunca escrito, que teve início hoje, deixou-me comovida. Senti as tuas palavras como se estivesses aqui à minha beira a contar-me estes momentos de cumplicidade entre pais , filhos, marido, mulher.Vivi em Lisboa durante alguns anos e imaginei esta loja ali para os lados das Portas de Santo Antão.Este diálogo trouxe-me à memória alguns que tive com o meu pai e sobretudo aqueles em que ele queria comprar uma prenda para a minha mãe e pedia a minha opinião.
Continua a escrever estas e outras páginas. Escreves afectos,escreves com amizade, escreves com gosto para quem te lê.
Obrigada, amigo ( Tó).
Beijinhossss

António Inglês disse...

Olá Elvira

Confesso-lhe que quando a escrevi mas vieram as lágrimas aos olhos também.
Sou igualmente um sentimentalão com o olho fácil de lacrimejar...
Foi apenas um simples pensar alto, depois de ter recebido o meu crucifixo que tanta falta me fazia. acredite.
Não precisa de se preocupar com as suas visitas. Virá quando quiser e puder. Espero sinceramente que esteja a conseguir realizar o seu sonho antigo minha amiga.
Repare que esse sonho se liga a seus pais, como penso me disse, e esta minha postagem também serviu para me lembrar deles.
Curioso. Um beijinho e boa noite.
José Gonçalves

António Inglês disse...

Olá sophiamar

Pois eu vivi em Lisboa durante muitos anos e embora dela goste, não descansei enquanto não vim viver para a província, bem para perto do mar, da minha horta, do meu jardim, das minhas plantas, dos meus animais e das minhas árvores.
Esta loja de que falo na postagem não era por acaso, para as Portas de Santo Antão que conheço bem. Eram na zona do Martim Moniz e Almirante Reis.
São recordações que o meu "amigo alemão" ainda me vai permitindo lembrar.
Beijinhos
José Gonçalves

avelaneiraflorida disse...

Amigo José Gonçalves,

sinto-me comovida ao ler estas páginas de um "diário" que traduz sentimentos tão profundos...
"BRIGADOS" pela partilha com todos nós...

Mas fez-me recordar páginas de um díario que, se calhar, nunca escreverei ...mas que me transformaram na mulher que sou hoje, simplesmente porque tive a meu lado um homem inteiro, completo, e de quem nunca deixo de sentir saudade!!!!
Um resto de boa noite!!!!

António Inglês disse...

avelaneiraflorida

Acho que todos nós temos um diário que nunca escrevemos.
Esta é uma página de entre outras que recordo com saudade.
Um dia destes contarei outra história que me lembre, pois já vai sendo difícil que a memória me permita fazê-lo.
Desejo-lhe uma noite serena.
José Gonçalves

Maria disse...

Este post comoveu-me.
A simplicidade com que escreves esta página do teu diário é igual à intensidade do teu sentimento e à emoção que nos transmites e provocas.
Esse teu "sentires-te despido" sem o fio e crucifixo que o teu pai te deu, e hoje, com ele posto, sentires-te outra vez um "homem completo" é muito bonito.

Permite-me que te deixe um beijo

António Inglês disse...

Maria

Eu sou um homem simples, de gostos simples, palavras simples mas de sentimentos e emoções muito complicadas.
Agradeço-te as palavras amáveis e sensíveis que me dedicas.
Confesso que nunca esperei despertar tanta emoção. Afinal mais não fiz que deixar que o pensamento me transportasse para outras paragens por causa de um simples crucifixo. Simples mas carregado de significado do qual não gosto muito de me separar.
Foi só isso que vos contei, mais nada. Eu sou assim mesmo.
Recebo hoje esse beijo que me deixas, como um abraço bem forte e sentido.
Um beijo também para ti.
Uma noite serena.
José Gonçalves

Elvira Carvalho disse...

Entendeu-me mal meu amigo. O meu sonho nada tem a ver com os meus pais. O que eu disse é que tenho que cuidar deles, meu pai tem 90 anos, minha mãe 82 e é paraplégica, há quase 25 anos devido a 3 AVCs. E que isso aliado ao resto me ia tornar mais difícil comentar todos os dias.
Um abraço

António Inglês disse...

Amiga Elvira
Fui reler o seu comentário anterior e verifiquei que fiz uma leitura errada realmente, do que peço desculpa.
Misturei tudo, mas já percebi.
Peço desculpa se fui inconveniente mas não era minha intenção.
Tenha uma noite serena
José Gonçalves