quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

PORTUGAL ESTÁ A DEIXAR MORRER O PATRIMÓNIO HISTÓRICO


Portugal está a deixar cair os seus monumentos mais emblemáticos. Um terço do Património Mundial precisa de obras urgentes.




Avista-se da cidade. Imponente. À medida que nos aproximamos torna-se gigantesco. Não é por acaso que o título de jóia da coroa lhe é atribuído. Mas ao percorrermos os 4800m2 de construção edificada que compõem o Convento de Cristo, em Tomar, a realidade afigura-se monstruosa. A chuva intensa marca-lhe cada fissura, cada mazela. Desde as ruínas do castelo ao hospital militar devoluto, aos claustros seguros por traves frágeis, à Janela Manuelina cujos motivos se escondem atrás dos líquenes... O que fizemos ao nosso património? A pergunta repete-se de Norte a Sul do país. E dá azo a uma outra, mais concreta, mais real e impossível de responder: quanto dinheiro será necessário para recuperar um universo histórico tão vasto?

Charola (raríssimo santuário datado da alta Idade Média), um dos "ex-libris" do Convento de Cristo, usufrui já de um programa activo de mecenato. A entrar na terceira fase de intervenção a nível das pinturas murais, viu a Cimpor sensibilizar-se com a degradação do seu deambulatório magnificamente decorado no século XVI. Mas faltam exemplos semelhantes, de Norte a Sul do país.

Na Sé de Évora onde o vento e chuva batem contra as janelas em ferro que compõem a cabeceira do edifício, sente-se essa falta de intervenção, assim como se sente e vê a olho nu na Igreja de São Francisco, de arquitectura gótico-manuelina e que integra a famosa Capela dos Ossos. As vigas de madeira que sustentam a nave da igreja, a maior nave central da Península Ibérica, estão a ruir e a abrir brechas por todo o lado.



Lixo na Sé de Lisboa, risco na Ribeira

Também na Sé de Lisboa, entre as diversas orações que lá se fazem, algumas são em intenção da própria estrutura da igreja - para que não ceda e para que as placas de vidro não caiam em cima de ninguém. Ali só através de passadeiras de metal se consegue atravessar o claustro - imenso buraco aberto há 30 anos, a mostrar ruínas de edificações anteriores (romanas ou islâmicas, não se sabe ao certo). Ali, excrementos de pombo convivem com garrafas de plástico, sacos e lixo avulso, enquanto os turistas deambulam por entre arcos, ogivas, capitéis e inscrições com uma história mais velha do que Portugal. É triste, mas é verdade.

Na Ribeira, no Porto, o cenário não é mais animador. O perigo de derrocada não ameaça só visitantes, vive dentro da cabeça de moradores e comerciantes. Em Valença do Minho, as muralhas da fortaleza também podem cair. As de Campo Maior, Serpa e Estremoz, no Alentejo, estão por tratar. Em Santarém, o Tejo treme sem saber quando vai receber as pedras da muralha que espera por verbas para uma solução definitiva, constantemente adiada pelos problemas de engenharia. A Fortaleza da Ínsula, em Caminha, tem a erosão como maior inimiga. A Ermida de São Gião da Nazaré não tem melhor sorte. A mesma do Mosteiro de Pitões das Junias, no Gerês. No Algarve, Cacela-a-Velha já não reconhece as suas muralhas, e Tavira não sabe sequer se a vila romana de Balça terá futuro.

Ao abandono está, ainda, a Fonte do Milho, um sítio romano em pleno Douro. Mais acima, em Bragança, a Lorga de Dine, na Gruta de Vinhais, no concelho de Bragança, tem as estalactites serradas. O local foi vandalizado e nem a Direcção Regional de Cultura do Norte sabe disso. Diz que a tutela não é sua e explica que alguém tem a chave da porta que dá acesso ao sítio pré-histórico. O vandalismo toma formas diferentes em Silves, Monsaraz e, mais uma vez, Bragança. O castelo da vila algarvia viu as suas muralhas serem abertas para que uma nova porta se construísse, na vila alentejana, ao lado da fortaleza nasceu uma cratera para estacionar automóveis, e na capital de Trás-os-Montes há uma esplanada de vidro colada à velha Domus Municipalis. E os exemplos multiplicam-se.




Ministério promete medidas

O Ministério da Cultura, que tutela todo o património imóvel nacional, já avançou com uma primeira proposta: lançar o desafio às grandes empresas de obras públicas para, em forma de mecenato, oferecerem 1% de cada empreitada que lhes seja adjudicada em obras de requalificação. Castelos, igrejas, mosteiros, palácios, sítios arqueológicos, centros históricos...

Há muito por onde escolher e trabalhos de todas as dimensões à espera de serem iniciados. A solução, importada de Espanha (cujo Estado adoptou mesmo uma taxa fixa de 2% a cada empreitada pública), surge como o único caminho. Mas a proposta do Governo não saiu até agora da gaveta e não passa de uma miragem.

Felizmente, além do já citado exemplo do mecenato da Cimpor, outros bons exemplos vão florescendo. Em Évora, a Fundação Eugénio d'Almeida toma a dianteira para requalificar o Palácio da Inquisição, o Pátio de S. Miguel, o Palácio da Condessa de Vila Alva. E associa-se à Câmara Municipal e à Direcção Regional de Cultura do Alentejo no projecto Acrópole XXI (10 milhões aprovados pelo QREN) recuperar a Torre do Salvador, a Casa de Burges...

Mas Lisboa e toda a região do Vale do Tejo, já não têm direito (por via do seu nível de vida médio) a quaisquer fundos comunitários, o que ainda agrava o problema. É nesta região que o mecenato terá de ser decisivo.

O alerta está lançado, mas a resposta cinge-se a dois artigos da Lei do Património (por regulamentar há oito anos), que entrarão em vigor em 2009: as regulamentações da actividade arqueológica e da intervenção em centros históricos com base na criação de Zonas Especiais de Protecção nas envolventes dos edifícios classificados. O Estado sabe que está em dívida, a consciência pesa-lhe e pesa-lhe mais ainda quando pensa na indústria do turismo.



Os números do património

3297- imóveis classificados em todo o território português

793- edifícios classificados como Monumentos Nacionais

2085- edifícios estão classificados como imóveis de interesse público

13- classificações de Património Mundial inscritas na lista da UNESCO. Um terço estão em risco

27 milhões de euros para os monumentos da Humanidade




Com as campainhas de alarme a soar, as autoridades prometem que 2009 é o ano em que o dinheiro vai começar a chegar. Será mesmo? Para já, o Instituto de Gestão do Património Arquitectónico (IGESPAR) vai contar com 2,8 milhões para iniciar um programa de recuperação dos monumentos portugueses inscritos na lista do Património Mundial da UNESCO. O plano de requalificação conta com uma comparticipação da UE de 55% e é ainda uma parceria do Ministério da Cultura com o Ministério da Economia através do Turismo de Portugal e com as câmaras municipais. Chama-se Rota do Património Mundial, inclui intervenções em cinco edifícios classificados e demorará cinco anos a executar.

O Mosteiro da Batalha, a Torre de Belém, o Mosteiro dos Jerónimos, o Mosteiro de Alcobaça e o Convento de Cristo serão os usufrutuários da maior fatia dos ¤25 milhões. As acessibilidades e a envolvente dos edifícios serão o primeiro passo a ter em consideração pelo IGESPAR, que tutela os monumentos património da Humanidade. Mas, a seu tempo, cada um deles será intervencionado.



Os diagnósticos já estão feitos e os projectos de intervenção definidos. O Plano de Pormenor para a envolvente do Mosteiro da Batalha vai resolver os problemas de concentração dos edifícios que o rodeiam e reorganizar os arruamentos circundantes. O objectivo é desafogar o mosteiro e desviar ainda a estrada nacional, muito movimentada e poluidora - um dos factores que mais tem contribuído para a degradação da pedra que serve de estrutura ao edifício.

Os terrenos a Norte do Mosteiro de Alcobaça vão ser expropriados para que seja criada uma zona com características mais compatíveis com a riqueza do monumento. Mas a grande intervenção em Alcobaça será a recuperação da ala Norte do Mosteiro. O antigo hospício, devoluto há 15 anos, dará lugar a uma unidade hoteleira de prestígio, que não comprometa a dignidade do edifício. Ainda na ala Norte, está em aberto a possibilidade de criar um espaço cultural capaz de albergar o espólio de Vieira Natividade, uma oficina para os barristas de Alcobaça ou um pólo universitário.

Em Tomar, as verbas serão aplicadas na requalificação da Mata dos Sete Montes, aproximando significativamente o Convento de Cristo da cidade e da população. Na capital do país, o IGESPAR pensa trabalhar a ala nascente do Mosteiro dos Jerónimos no sentido de a elevar, dando-lhe outra escala urbana. Quanto à Torre de Belém, as obras vão fixar-se na construção, no Forte do Bom Sucesso (mesmo ao lado) de uma zona de acolhimento com direito a bilheteira e instalações sanitárias, ficando o monumento liberto para que se desenvolva no seu interior um centro interpretativo.



Apenas com tutela normativa sobre os restantes espaços classificados pela UNESCO, o IGESPAR (representante do Ministério da Cultura na Comissão Nacional da UNESCO) promete não baixar os braços em relação à fiscalização da observação de todos os critérios definidos internacionalmente para que os títulos não sejam objecto de revisão. Sintra, Évora, Porto, Angra do Heroísmo, Vale do Côa, Guimarães, Pico e Madeira também não querem perder as suas características originais e correr o risco de serem excluídos da lista do Património da Humanidade.

Recorde-se que a vigilância por parte da UNESCO está cada vez mais apertada e que a tolerância se aproxima do zero. Há dois anos que o centro histórico de Dresden, Alemanha, está suspenso da lista devido à construção de uma ponte na zona.Além das medidas já enunciadas, o IGESPAR pretende ainda aplicar parte da verba proveniente do QREN na valorização e animação dos monumentos, que passarão a contar com uma programação cultural regular e a funcionar em rede. O Programa Informação Turística dará, depois, corpo à Rota do Património Mundial, colocando-a no mapa de um turismo.




Portugal Património da Humanidade


1983 Centro Histórico de Angra do Heroísmo, nos Açores
1983 Mosteiro dos Jerónimos e Torre de Belém, em Lisboa
1983 Mosteiro da Batalha
1983 Convento de Cristo, em Tomar
1988 Centro Histórico de Évora
1989 Mosteiro de Alcobaça
1995 Paisagem Cultural de Sintra
1996 Centro Histórico do Porto
1998 Sítios Arqueológicos no Vale do Rio Côa
1999 Floresta Laurissilva na Madeira
2001 Centro Histórico de Guimarães
2001 Alto Douro Vinhateiro
2004 Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico, nos Açores

Alexandra Carita (texto), José Ventura e Net (fotos)

Texto publicado na edição do Expresso de dia 3 de Janeiro de 2009



António Inglês


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