terça-feira, 8 de janeiro de 2008

UM OUTRO NATAL

*

Numa pequena aldeia do interior de Portugal, João Afonso, rapazola de trinta e cinco anos bem medidos, pintor da construção civil, sai do trabalho ao fim da tarde de um dia de intensa actividade, depois de um retemperador banho que lhe retirou do corpo os pingos de tinta que ao longo do dia se foram nele acumulando.

De passo apressado, sacola da merenda bem presa na mão, João Afonso dirige-se para o pequeno carrito comprado a crédito já lá vão dez anos, era ainda solteiro. Quando o comprara usado, tinha ele uns bons cinco anos e nesta altura mostrava no roncar do motor o desgaste do uso.

João Afonso cuidava-o com o carinho próprio de quem sabe que do resultado do seu trabalho dificilmente teria possibilidade de comprar outro nos tempos mais próximos, nem isso lhe merecia atenção pois ainda hoje, muitos dos amigos lhe cobiçavam o “carocha”, como carinhosamente o tratava.

E é no seu “carocha” que se dirige à Escola Primária da terra, uma daquelas Vilas em que ainda existe escola primária, para ir buscar o pequenito Ricardo Afonso, fruto do grande amor que João e Rosa tinham começado nos bancos da escola, a mesma onde andava agora o rebento.

Casaram cedo e dois anos depois do enlace, o Ricardo abria os olhitos para a vida. Era a razão de viver daquelas duas almas que com coragem enfrentavam as dificuldades que todos os casais jovens enfrentam quando unem os seus destinos e querem continuar pela terra que os viu nascer.

Fora difícil a vida da família, mas com o trabalho dos dois, a Rosa era operária fabril, lá foram aguentando o “barco” e mercê de uma vida cuidada e modesta a coisa ia dando para viverem condignamente.

A casita que habitavam, tinha sido construída pelo João com a ajuda dos cunhados, que partilhavam a mesma profissão, num terreno pertença de seus pais e que lhe fora deixado em herança.

Apesar das dificuldades, conseguíam ser felizes porque o amor enchia o lar e a vida ia sendo levada com o sorriso nos lábios entre os três numa cumplicidade que só vista.

Um dia, o destino tramou-lhes as voltas e a Rosa, a alma e a alegria daquela casa caiu à cama de forma irreparável. Uma doença fatal e galopante acabou por a levar, deixando pai e filho entregues à dor que teimosamente os consumia.

Desde esse dia João desdobrou-se em pai e mãe e assumiu nos ombros a tarefa de cuidar do seu Ricardo sozinho e das lides da casa. O filho era o laço forte onde João se agarrava com todas as forças da vida, e que o mantinha unido à sua Rosa, que não conseguía esquecer.

Naquele dia, João encostou o carrito ao passeio da escola e aguardou serenamente o toque da campainha, que tantas vezes ouvira tocar nos seus tempos de garoto naquele mesmo local. Quando as portas da escola se abriram já o João estava ao portão de braços abertos para receber o seu pequenito que ao vê-lo, correspondia ao gesto e lhe saltava para o colo num abraço que parecia nunca mais acabar.

Seguíram para casa num repente, tão repente quanto o “carocha” lhes permitiu e o nosso homem recomeçou a tarefa de todos os dias. O Ricardo agarrou-se aos trabalhitos da escola e o João ao preparo da janta e da casa.

Estavam perto do Natal e já na sala os enfeites da quadra compunham o ambiente que o João cuidadosamente preparara para que o Ricardo sentisse a magia da época.

Mas a falta da Rosa era difícil de colmatar e por mais que João se esforçasse a sua ausência sentia-se em todo o lado. Nem a visita da família e dos amigos atenuavam aquele vazio que silenciava cada canto onde a sua Rosa deixara o seu perfume.

Na véspera de Natal, Ricardo olhou o pai e perguntou-lhe:

- Está triste Pai?

- Um bocadinho filho...

- É por causa da mãezinha Pai?

- É Ricardo, a mãezinha faz-nos muita falta, mas olha vamos falar de outra coisa, está bem?

- De que queres falar Paizinho? De carros?

- Não Ricardo. Estamos no Natal, podemos falar do Pai Natal se quiseres...

- Para quê paizinho?

- Ora Ricardo, não gostas do Pai Natal? Olha que ele se esforça muito para vir até nossa casa deixar o teu presente!

- Eu sei pai, mas ele não me tráz o que lhe peço há tanto tempo...

- Olá... que foi que lhe pedis-te que ele ainda não te trouxe? Olha que o Pai Natal fala sempre comigo antes de vir e eu confirmo-lhe tudo o que lhe pedes... Lembras-te daquela pista que lhe pedis-te por carta no ano passado?

- Lembro, mas o que lhe tenho pedido sempre ele não me tráz e contigo nem fala nisso para não te deixar triste. Eu peço-lhe para nos trazer a mãezinha de volta mas ele diz-me que não pode ser e que fique descansado porque um dia nos voltaremos a encontrar. É verdade Pai?

- É filho.... um dia.... voltaremos a ver-nos os três. Mas olha isso vai demorar muito tempo. Não queres mesmo falar de outra coisa? E não sabia que falavas com o Pai Natal...

-Pois falo, mas vamos falar do que tu quiseres. Olha antes disso limpa os olhos que estão cheios de lágrimas. Estás a chorar paizinho?

- Não Ricardo, é alergia às tintas que o pai usa nas pinturas das obras...

- Está bem, mas se calhar vais ter de mudar de trabalho porque andas muitas vezes com os olhos cheios de água!

- Vamos pensar nisso filho, só que vai ser difícil.

- Olha, está na hora de irmos para a deita e temos de deixar que o Pai Natal sinta que ninguém o vê para te deixar o presente. Vamos, o pai leva-te à cama.

- Está bem paizinho, vamos dormir e depressa!

E lá foram para aquela noite cheia de magia e de tristeza que se repetia ano após ano.

João pegou no filho ao colo e preparava-se para o ir deitar quando reparou que num canto, bem debaixo da árvore de Natal, estava um papel branco cheio de traços de muitas cores. Era um desenho do Ricardo.

- Que é aquilo filho? Não é um desenho teu?

- É sim pai.

- E que faz ali?

- É a minha prendinha para a mãe. Sabes ela vem buscá-la e leva-a com ela...

- É? Perguntou o João com os olhos embaciados das lágrimas que ia abafando conforme podia. E como sabes que isso acontece filho?

- Eu sei pai, é sempre assim!

A situação revelou-se complicada mas lá se foram deitar, que o silêncio da noite ajudá-lo-ia a recompor-se e a arranjar maneira para durante a noite, sem que o Ricardo sentisse, dar um pulinho à sala e guardar o desenho para que o filho acreditasse que a sua Rosa, a mãe o tinha mesmo vindo buscar.

Deixou o tempo rolar, fechou-se no seu quarto e encostou-se na cabeceira da cama, repousando os olhos no lado onde tantas noites a Rosa se deitara e a ele se aconchegara. Esperava que o Ricardo adormecesse profundamente para que nada ouvisse ou sentisse, quando lá fosse buscar o desenho.

Mas o cansaço da profissão ditou as suas leis e o nosso João adormeceu assim mesmo sem que disso se desse conta.

Habituado a levantar cedo para o trabalho, mal o dia clareou, saltou da cama ainda vestido, tal como tinha adormecido na noite anterior e num ansioso pulo até à sala, voou para guardar o desenho do Ricardo, no maior silêncio que conseguiu.

Não soube como entrou no quarto do filho, nem como conseguiu acordar o Ricardo naquela manhã.

As forças faltavam-lhe e a voz não saía com a mesma coragem.

É que o desenho que o Ricardo deixara para a mãe debaixo da árvore, feito com tanto amor, não estava lá.

Não encontrou resposta para o que se passara, mas o certo é que a partir daquele Natal também o João passou a deixar na sala debaixo da árvore uma prendinha para a sua Rosa.

José Gonçalves

22 comentários:

Branca disse...

Linda história de amor e emoção, José.Eu bem digo ue os ares do Minho te inspiraram.Nem sei que te dizer, mas esta históra romanceada mostra um talento nato em ti para a escrita do romance. Vai explorando essa vertente.
Aproveito para agradecer as palavras lindas de amizade que me deixaste, fiquei com a lama cheia. São pessoas como tu que me mantêm aqui.
Até breve.
Beijinho

São disse...

Meu querido amigo, uma pessoa tão sensível assim só tem que ser feliz!!
Que Deus te abençoe!!

Maria disse...

Amor..... ternura.....
é o que me ocorrre com esta estória....

Beijo

Elvira Carvalho disse...

Que lindo conto José. Cheio de encanto e emoção. Adorei. Tem que nos dar mais vezes estas histórias.
Quem escreve assim não tem o direito de escrever só para a gaveta.
Muito obrigada pelo comentário que deixou no Sexta-feira. A sua opinião é muito importante para mim.
Um abraço

Joaninha disse...

Muito sentido josé, parabens!

António Inglês disse...

Branca

Credo minha amiga, um talento em mim??? Esta foi apenas uma pequena história que me ocorreu durante a noite e que traços muito aproximados a uma situação que conheço e por isso resolvi escrevê-la, nada mais. Nem quero acreditar no que me dizes, que sei são fruto da simpatia e da amizade que já nos une.
Um beijinho
José Gonçalves

António Inglês disse...

Olá São

Sensível sim, sou e muito.
Feliz sim, sou e muito.
Abençoado não sei mas faço por o merecer.
Mas se de alguma coisa eu tenho a certeza é de que tenho um grupo de amigos importante.
Obrigado São.
Um abraço
José Gonçalves

António Inglês disse...

Olá Maria
Obrigado pelas tuas palavras.
Um beijinho
José Gonçalves

António Inglês disse...

Bom dia Elvira

Eu é que lhe agradeço as palavras que me deixa aqui.
Eu não escrevo, apenas de vez em quando me lembro de algumas histórias durante a noite e depois passo-as ao papel.
Esta tem alguns traços de uma verídica que conheço e por isso aqui a deixei.
Os nomes são falsos e ESTA é rigorosamente virtual.
Quanto à história com que nos brindou mais uma vez, essa sim, essa mostra-nos quem a escreve e como escreve.
Tal como lhe disse, li-a e reli-a três ou quatro vezes e não me cansei e acho que se alguém tem de continuar a escrever e não para a gaveta como me diz.
A minha amiga tem esse dom dentro de si.
Deixo-lhe um grande abraço
José Gonçalves

António Inglês disse...

Olá Joaninha

Obrigado pelas suas palavras.
Deixo-lhe um beijinho
José Gonçalves

amigona avó e a neta princesa disse...

Amigo Zé não conhecia esta tua veia de escritor! Se calhar tenho andado distraída!!! Parabéns meu amigo, é um doce de história...continua, acredita que tens leitores!

FERNANDINHA & POEMAS disse...

Olá Zé lindo texto, mexeu com o meu frágil coração.
Escreves com sentimento, paixão, amor e muita amizade.
Obrigada amigo por existires.
Um abraço com muito carinho.
Fernandinha

avelaneiraflorida disse...

Amigo José Gonçalves,

quem é que escrevia ...que não sabia comentar poesia?????
ELA AQUI ESTÀ, ESCRITA E SENTIDA!!!!
Só que não em verso!!!!!
Lindo!!!!
Agora ficamos a esperar outros mais...

Bjkas, amigo!!!

Isamar disse...

Uma história carregada de carinho que prova que o Natal é sempre que um homem quiser. Gostei muito e não a consegui ler de uma só vez. Parei, continuei, parei mas o interesse que me despertaste não me deixou sair sem acabar. Lindíssima, real e comovente.Baseaste-te numa história conhecida mas deixaste um toque muito especial. Continua a deliciar-nos com histórias semelhantes, do quotidiano de cada um de nós contadas com a tua sensibilidade.
Beijinhosssssss

Elvira Carvalho disse...

Pois eu continuo na minha. Você escreve muito bem. Prende os leitores e isso é muito importante.
É uma história mais ou menos real? Pois são as melhores. O que eu faço é exactamente isso amigo. Misturo a realidade com a ficção.
Um segredo. O gazela existe, foi barco de pesca bacalhoeira, hoje é museu do mar em Filadélfia. Todo o cenário do conto eu assisti anos a fio, e basta fechar os olhos para recordar. O temporal existiu exactamente no sítio descrito no conto, em 1968. A Clara e o Pedro e toda a história de amor à volta, só existiu mesmo na minha cabeça.
Por isso lhe digo mais uma vez, é uma linda hstória e se tiver mais por favor... partilhe.
Um abraço

António Inglês disse...

Olá amigona

Foi uma história que me ocorreu depois de ler uma noticia que me fez recordá-la.
Estas personagens são fictícias mas a história tem algum fundamento, só que está rendilhada com alguma ficção.
Qualquer semlehança com o original é pura coincidência.
Obrigado na mesma pelas tuas palavras.
Um beijinhio
José Gonçalves

António Inglês disse...

Olá Fernandinha

Sinceramente não esperava tamanho êxito na história.
Nem sempre consigo escrever.
Tenho de me inspirar primeiro e a ideia tem de nascer durante o sono.
Foi o que aconteceu, embora tenha parte de verídica.
Obrigado pelo elogio
José Gonçalves

António Inglês disse...

avelaneiraflorida

Se esta história é poesia então sim, então senti-me inspirado.
Tal como já disse anteriormente, poesia não sei escrever nem convivo muito bem com ela, mas acho que cada um de nós a sente à sua maneira.
Esta pequena história apenas surgiu de um sonho baseado em factos reais que conheço, mais nada.
De resto continua a pensar da mesma maneira que pensava anteriormente.
Um beijinho
José Gonçalves

António Inglês disse...

Olá Sophiamar

Quem conta um conto, aumenta um ponto e foi o que me limitei a fazer.
Acrescentei-lhe um pouco do meu "eu".
E esta não é mesmo a minha vocação.
Deixo-te mil beijinhos de agradecimento.
José Gonçalves

António Inglês disse...

Elvira

Poderei dizer-lhe que lendo as suas histórias e as da sophiamar, me inspiro muito.
Na manhã em que escrevi esta, levantei-me com uma vontade enorme de a querer escrever.
Sentei-me no computador e foi o que saiu.
Não correu muito mal.
Um grande abraço de amizade e obrigado pelas suas palavras.
José Gonçalves

Carminda Pinho disse...

Zé Gonçalves,
só hoje li este seu post, pois tinha passado por ele e por pura falta de tempo(gosto de ler com calma) não o tinha lido.
Chego ao fim deste "Outro Natal", com um brilhosinho nos olhos, sim.
A história é envolvente muito bem contada(escrita) e naturalmente triste e ternurenta.
Venho aqui a este "montes e vales" há muito pouco tempo como sabe. Mas de uma coisa eu já tenho a certeza, o autor deste conto só pode ser um homem bom, porque só os homens bons têm a sensibilidade que os leva a escrever assim.

Beijinhos

António Inglês disse...

Olá Carminda

Agradeço-lhe as suas simpáticas palavras que muito me honram.
Realmente somos "visitas" recentes mas desde já lhe digo que a tenho visto pela casa de algumas amigas as quais considero muito.
Agarrando naquele velho chavão de que os amigos dos meus amigos, meus amigos são,( embora na realidade as coisas não se passem bem assim), acredite que pelo relacionamento que a vejo ter com elas, já a considerava uma amiga. E estou a ser sincero acredite.
Quanto à história, saiu-me pois sonhei com ela. Baseou-se em alguns factos reais e depois acrescentei-lhe umas pitadas de imaginação e deu nisto. Mas não sou nem escritor, nem pretensões tenho.
As coisas saem quando saem e não é muito comum isto acontecer.
Imaginação? Tenho muita isso é verdade e não fora isso não sei como teria conseguído sobreviver até agora, o que é um problema comum a todos os portugueses no momento. Mas sempre tive uma imaginação fértil em historietas que meus falecidos pais gostavam de ouvir à noitinha antes de nos deitar-mos. Ficou-me o jeito mas não a prosa.
Deixo-lhe um abraço de amizade.
José Gonçalves