segunda-feira, 17 de novembro de 2008

TENHO SAUDADES DE TI, LISBOA!

Av. Guerra Junqueiro com a Pastelaria Mexicana


7h15m de um dia qualquer de Dezembro do ano de 1961. Os primeiros sinais da manhã eram dados por aquela senhora que silenciosa se aproximava do meu quarto, tentando que eu aproveitasse até ao último segundo o descanso de um sono retemperador.

- Tósinho, levanta-te filho que está na hora! Anda lá filho, acorda!

- Vou já mãe!



Ribeira


Respondia-lhe como se ela me estivesse a acordar naquele momento, mas a verdade é que a ouvira desde que se tinha levantado e trocado algumas palavras com o meu pai.

Pareciam-me de circunstância com algum arrufo à mistura, mas essa era a forma que aqueles dois encontravam para se entenderem. Foi assim toda uma santa vida e nunca se deram mal com isso. Muitas vezes, pareciam o gato e o rato, aparentavam indiferença e chegavam a não se falar, mas o amor estava... esteve sempre lá. Que o digam os últimos anos das suas vidas.

- Então filho, já viste as horas? Queres chegar atrasado?

- Vou já mãezinha!



Praça de Londres


Era o segundo aviso e eu esperava por entre lençóis, o terceiro que me servia normalmente de ponto de partida. Num gesto lento e demorado, abordava a casa de banho de olhos ainda fechados e assim entrava debaixo do chuveiro. As primeiras gotas ainda mornas chegavam para me acordar de vez. A partir daquele momento as coisas desenrolavam-se de forma mais ligeira e dali até estar pronto para sair para as aulas era um instante.

- Té logo Mãe!

- Que é lá isso? Então o pequeno almoço?

- Não tenho fome mãe e já estou atrasado!

- Isso não me interessa, eu chamei-te a tempo! Vá, tens ali na cozinha um copo de leite e um pão com manteiga! Mexe-te rapaz, anda!



Restauradores com o velho cinema Éden, hoje um hotel


Vencido mas não convencido, bebia num ápice o leite e o pão acompanhava-me até à rua e era comido pelo caminho.

Num passo apressado, descia a S. João de Deus até ao virar da esquina da Padre Manuel da Nóbrega, onde num último aceno me despedia de minha mãe que não largava a janela enquanto aquela não fosse dobrada. Adivinhava que muito depois disso ela ainda por lá estava rezando para que nada me acontecesse até ao regresso a casa depois das aulas. Sei que para ela o ficar ali era a certeza de que me protegia pelo caminho. Era assim com todos nós lá em casa.



Av. de Roma com a ponte sobre o comboio e a esquina para a Av. São João de Deus


Aquela avenida era feita num instante e depressa apanhava o eléctrico no Areeiro que me levaria até à Praça do Chile onde trocava por outro até ao Alto de São João. Oito tostões era o preço do bilhete. A Rua Lopes era feita de forma mais apressada porque ao fundo ela esperava-me nas suas botas brancas e livros debaixo do braço, encostadinhos ao peito. Um abraço sôfrego que embrulhava mil beijos, era dado entre muros altos de uma viela que nos resguardava de olhares indiscretos. Como se a despedida do dia anterior tivesse sido feita um século antes. E de mão dada até à Escola, lá íamos devagar, saboreando cada minuto e cada carícia que as mãos encontravam. Uma primeira paragem numa pequena tasca, onde comprava uns cigarritos avulso com os trocos que me ficavam do dia anterior, em que o percurso para o Liceu fora feito a pé propositadamente para que naquela manhã os pudesse comprar.



Alfama engalanada


A segunda paragem era normalmente à porta da Patrício Prazeres numa despedida tão penosa e tão difícil que só era atenuada porque no primeiro intervalo eu lá estaria no pátio de olhos pregados no varandim das meninas, esperando ansioso pelo olhar da minha primeira namoradinha. Na época, os recreios eram diferenciados, os rapazes tinham o seu espaço separado do das raparigas. Outros tempos.



Av. da República


Mas as aulas do dia chegavam ao fim e o regresso a casa fazia-se de forma bem mais calma, de novo mãosinha dada com o namorico que me enchia de orgulho perante a rapaziada toda. Afinal a “garota” era um espanto e reconhecida por todos como uma das mais bonitas da Patrício Prazeres. A despedida era feita quase sempre no cimo da Rua Lopes, já no Alto de São João, ali em frente ao cemitério, onde tantas vezes entrámos para namorar sem receio das almas do outro mundo. Tinhamos mais medo das que nos podiam aparecer sem o desejarmos e era por entre os jazigos que muita vez passeámos sem nos darmos conta por onde andávamos. Nada importava bastando que estivessemos juntos e em segurança.



Cais do Sodré


De novo o eléctrico até ao Chile e uma troca rápida por outro para me levar ao Areeiro num regresso alegre e bem disposto, carragadinho de saudades até ao dia seguinte. A Padre Manuel da Nóbrega e de novo a esquina com a São João de Deus. Num lançar rápido de olhar lá encontrava a minha Mãe na janela onde me deixara de manhã. Parecia que nunca de lá saíra à minha espera.

- Olá Mãe!

- Olá filho, correu tudo bem? Vens cheio de fome não?



Terreiro do Paço


O lanche estava já à minha espera e nem pensava em dizer que não, caso contrário havia sermão e missa cantada, e confesso que àquela hora a fome já apertava.

O jardim em frente a casa era por excelência o poiso da rapaziada da Praça onde morávamos. Jogos e treta compunham os fins de tarde até retornarmos ao lar.

A fome apertava mas ninguém comia naquela casa até o meu pai chegar. Era o patriarca e todos sabíamos que tinha de ser assim.



Av. Almirante Reis


7h 15m de um dia qualquer de Dezembro de 1967. Os primeiros sinais da manhã eram os mesmo e a cena repetia-se vezes sem conta. Repetiu-se até aos 21 anos, idade com que casei e saí da casa paterna. A primeira namoradinha era já uma miragem e os meus horizontes tinham-se voltado para outros interesses que culminaram no enlace que me levou de casa de meus pais.



Alameda com a famosa Fonte Luminosa


A Escola era outra, os amigos renovados, mas a liberdade embora pouca e controlada tinha aumentado. Já não parava no Jardim em frente a casa, ou raramente o fazia. O Trevi era o café que de entre muitos que existiam na Av. De Roma, escolhera para ponto de encontro nocturno. O Tutti Mundi, o Vává, a Suprema, o Luanda, a Capri, o Londres, a Mexicana eram percorridos como se isso fosse uma obrigação. Depois partíamos Lisboa dentro em busca de aventura, desde Alfama ao Bairro Alto, da Baixa ao Cais do Sodré. O cacau da Ribeira foi muita vez um último adeus à noite e era já manhã quando chegávamos a casa. Claro que isto não era todos os dias, que na maior parte deles tinha hora marcada para regressar a casa.



Bairro Alto dos turístas


Uma vez por outra lá se organizava uma festa para dar asas ao companheirismo. Os bailaricos serviam às mil maravilhas para uns abracitos mais atrevidos com as raparigas.


Hoje, já não vivo na capital e a realidade é bem diferente da daqueles tempos. Não estou arrependido de ter vindo viver para a província, bem pelo contrário. Ganhei qualidade de vida e o stress só mesmo pelas dificuldades que a crise que se faz sentir por esse mundo fora nos provoca.



Areeiro


Fugi ao barulho, à correria, ao caos do trânsito, à poluição, às enchentes, às demoras, às filas intermináveis que me deixavam de rastos antes de começar a trabalhar, aos transportes públicos apinhados em horas de ponta, à vida selvagem a que a imensidão da cidade nos obrigava.



Rossio


Hoje tudo é mais calmo, as correrias acabaram e só faço as que quero e me apetecem, o trânsito é bastante compassado, a poluição menos visivel, as enchentes são poucas, as demoras não se mostram tanto, as filas quase desapareceram. Os transportes públicos andam com os passageiros contados e quase todos se conhecem, a vida selvagem é-nos oferecida pelas muitas matas que nos envolvem e por onde passeamos.



Praça da Figueira


Mesmo assim, tenho saudades de ti LISBOA! Tenho saudades da minha cidade, não a de hoje, mas daquela onde às oito horas da manhã, ao virar da esquina deitava um olhar de despedida a minha Mãe, num até logo cheio de fé e de alegria. Dessa Lisboa daquele tempo que não volta mais.

Tenho saudades dos Teatros de Revista no Parque Mayer, do piscar de olhos às coristas, das discotecas, da rambóia, do Cacau da Ribeira, das saídas às escondidas já depois de estarem todos a dormir, da janela da minha Mãe, dos sermões do meu Pai. Tenho saudades disso tudo, porque me fazem falta.



Saldanha


Tenho saudades de ti, LISBOA!

Fotos “surrupiadas” da Net

António Inglês


18 comentários:

Filoxera disse...

Tenho saudades de muita coisa, mas sobretudo de pessoas. Como um amigo que partiu demasiado cedo, numa idade em que ninguém devia morrer. Faz hoje anos e ele é o tem do meu post...
Beijinhos.

Elvira Carvalho disse...

Adorei este post. Sabe que eu vivia em Lisboa de 64 a 67? Vivia em Monsanto junto ao Campo do Casa Pia, em casa dum tio que era guarda florestal em Monsanto. Trabalhava na Saraiva Carvalho no Laboratório Sanitas, e ia muitas vezes dormir a Casa de uma colega de trabalho de quem era muito amiga, na Av do Brasil e depois ia-mos para o estádio Jose Alvalade ver as provas de atletismo que naquela altura era quase sempre de noite. A minha colega era prima da Lidia Faria, lembra-se dela?
Um abraço e uma boa semana

Carla disse...

que bem que descreveste essa saudade que parece vir bem de dentro de ti
beijos

Maria disse...

De Lisboa cidade tenho as saudades que aqui descreves, de andar a estudar (andámos pelos mesmíssimos sítios, e cafés, e tudo, e nunca nos encontrámos...).
Da Lisboa cidade para trabalhar não tenho saudades. Os engarrafamentos são muitos, a correria é imensa.
Gosto de Lisboa, sim, mas só ao fim de semana...

Beijo, António

António Inglês disse...

Filoxera

Já fui ao seu cantinho, mas vim de lá depressa e disso lhe dei conta.
Na verdade quem parte cedo demais não deveria partir. Foi uma história de me deixar bem "me baixo".
Ela não escolhe idades, nem sexos, nem credos, nem alturas.
Raio de vida que nem sempre segue o seu curso normal.
Beijinhos
António

António Inglês disse...

Elvira

Pois vivemos ambos em Lisboa, só que em sítios diferentes. A casa da sua colega de trabalho era bem perto da Escola Eugénio dos Santos onde andei no primeiro e segundo ano antigos.
Quanto ao estádio José Alvalade, guardo dele gratas recordações pois no nosso tempo era lá que efectivamente se assistia a provas de atletismo e foi onde mais tarde era feita o prólogo de partida para o Rali Tap. depois Rali de Portugal e que fiz com o meu carro.
A prova desenrolava-se na pista de atletismo e nem me saía nada mal.
A Lídia Faria, quem não conhecia? Não pessoalmente, mas sim porque foi uma atleta de eleição na época.
O Sporting sempre foi uma escola de atletismo e de futebol pois sempre deu muita atenção à formação. Contrariamente ao meu Benfica que pouca importância dava aos escalões mais novos. Agora as coisas mudaram e tudo se está a recompor. Esperemos.
Um abraço
António

António Inglês disse...

Carla

Vem mesmo dentro de mim, como dizes.
Ao escrever revivi todos os momentos que deixei na postagem.
Que saudades!!!
Um abraço e uma boa semana
António

António Inglês disse...

Maria

Quem disse que nunca nos encontrámos? Se calhar até nos conhecemos. Seguramente que nos devemos ter cruzado algumas vezes já que andámos pelos mesmos sítios.
Eu, tal como tu, também sinto estas saudades de Lisboa e gosto de lá ir em qualquer dia, mas desde que seja para regressar logo, logo.
E para te ser sincero, do que tenho mesmo saudades é daqueles tempos de jovem passados em Lisboa.
Penso que nos dias de hoje não poderíamos viver como então.
Enfim, já lá vai!
Um abraço
António

Isamar disse...

Quantas saudades desta Lisboa que eu também amo. Passei boas férias em Campo de Ourique, muito perto da Igreja de Santa Isabel.Depois, foram cinco anos,cinco bons anos, ali perto do Jardim Zoológico, em Sete-Rios. Jamais esquecerei esses tempos. Ia ao Estádio da Luz ver o meu Glorioso e, muitas vezes, almoçava no Califa. Bons amigos ainda conservo por Lisboa.

Beijinhos

António Inglês disse...

Olá Isabel

É como dizes, esta Lisboa que tu e eu e outros como nós amamos.
Sete-Rios, Estádio do Glorioso Sport Lisboa e Benfica, e o Califa, tudo locais que também frequentei. O Califa já um pouco mais tarde.
Tenho uns tios que viveram ali para os lados de Benfica e a zona foi-me familiar durante anos.
Também deixei alguns bons amigos e família por Lisboa. É lá que moram três dos meus cinco filhos.
Um abraço e um beijinho
António

gaivota disse...

e lisboa assim...éramos quase vizinhos... morei anos na Av. Estados Unidos, o meu primeiro emprego foi mesmo na S. João de Deus, a Av. de Roma fazia paret do meu dia a dia, depois morei anos na Av. do Brasil...
lololololol andei no liceu D. Filipa, e no Maria Amália...
tudo Alvalade!
tascas, restaurantes, bares, sempre os dessas zonas!
beijinhos

Anónimo disse...

António percebi a mensagem.
Claro que é sempre possível visitar Lisboa, mas há momentos, que não voltam nunca, mas nunca mais!
O cacau da ribeira.... pois e quem não ia até lá????
Se lhe for possível vir até cá este fim de semana, tem um convite aqui:
http://www.anapintora.blogspot.com/

António Inglês disse...

Fátima

Pois fiquei sem saber se o que me diz sobre perceber a mensagem terá alguma coisa a ver com a minha postagem anterior. É que não tem mesmo nada a ver com ela. Gosto de ir a Lisboa, tenho saudades dela, mas do meu tempo, do tempo em que viver em Lisboa valia a pena, era saudável, andávamos por toda a parte em segurança, e as nossas "brincadeiras" era de outra índole.
Não sou hipócrita porque maldades sempre se fizeram, mas os tempos eram diferentes.
Enfim, são tempos que já não voltam mais.
Não sei se irei a Lisboa este fim de semana, mas se lá for certamente que terei gosto em visitar esta exposição
Um abraço
António

António Inglês disse...

Gaivota

Afinal temos andado bem perto sem saber-mos. A av. de Roma foi durante os primeiros 21 anos da minha vida o meu poiso pois vivi até ali na Praça Afrânio Peixoto, portanto pertinho dela.
Foram anos de muita felicidade e muita aventura.
Se trabalhou na Av. São João de Deus então esteve muito tempo bem perto de minha casa e eu devo ter passado à sua porta vezes sem conta.
Como vivemos numa aldeia mesmo.
Um abraço
António

gaivota disse...

na afranio peixoto morava um amigo meu, mais velho, já andava no tecnico e eu no 1º ano do liceu...
o último parágrafo está muito lindo, também sinto essa saudade...
a minha mãe também ia sempre à janela e ficava até ao virar da esquina...
olhares, adeuses, ralhos, tudo!
e saudades, agora, na ausência...
beijinhos
(e o meu pai faria hoje anos!)

António Inglês disse...

GAIVOTA

Se esse teu amigo morava na Afrânio Peixoto, seguramente que o conheceria. Vivi ali durante 21 anos portanto conhecia quase todas as pessoas.
Durante muitos anos, aquela praça vivia como se de uma aldeia se tratasse. Todos nos conhecíamos, e nós miúdos juntava-mo-nos cá em baixo no jardim. Uns mais velhos, outros mais novos mas éramos quase como família. Parecia a província.
Os graúdos, poderíamos nem lhes falar mas todos nos eram familiares.
Lembro-me de um episódio interessante. Aquele jardim tinha um lago e nesse lago existiam alguns patos, entre eles uns Cisnes. Na época o jardim tinha um guarda,protegendo tudo isto, mas um dia o guarda distraiu-se e o "puto" Tozé, de fisga na mão, pregou com uma pedra na cabeça de um dos Cisnes e foi o "carmo e a trindade". O pai foi chamado à Câmara e depois à polícia. Era porteiro do meu prédio precisamente. Como quiseram que ele pagasse o cisne e ele entendeu que não o fazia, cumpriu uma pena de uns dias como forma de pagamento pelo pato.
Nunca o substituíram e pouco tempo depois acabaram, tal como o guarda.
Hoje nada disso existe.
Aquela praça tinha uma ligeira inclinação e uma das lojas que lá existiam era uma pequena oficina de automóveis. O bom do Tozé, o mesmo que tinha morto o Cisne, (era fresco o petiz), entendeu que já tinha idade para conduzir carros e entrou com outros "putos" da idade dele (era bem mais novo que eu, teria aí uns 6/7 anos na altura) num dos carros que ali estavam estacionados à porta da oficina. Como não tinha bancos, iam todos em pé e foi só destravar o carro e deixá-lo deslizar praceta abaixo.
Valeram alguns graúdos que acorreram ao veículo e mesmo em andamento saltaram lá para dentro e travaram-no. Poderia ter sido uma desgraça mas Deus protegia aquela Praça.
Tenho saudades desse tempo.
Um abraço
António

Anónimo disse...

António, entendo as saudades de Lisboa de outrora, no seu caso por 2 razões:
Pelo aconchego da mãe sempre atenta e protectora, e pela Lisboa da luz e da tranquilidade. Uma Lisboa que já não existe.
Abraço

António Inglês disse...

Fátima

Acho que entendeu na perfeição o que quis transmitir.
São tempos que já não voltam, mas confesso-lhe que neste momento me sinto feliz, muito feliz porque vivo com quem amo e num paraíso que muitos gostariam de ter.
Eu sei disso. Mas esta não a última terra onde viverei, espero. Como sabe tenho a casa à venda pois o meu projecto passa por ir viver para o Minho dos meus amores.
Só que uma vez por outra sou acometido por estas "saudades lamechas" e não há nada a fazer.
Por isso, de tempos a tempos lá vou em passeio até à capital e é rara a vez que não passo na Praça onde durante tantos anos vivi.
Olho para a mesma janela e fico com a sensação de que ainda lá vejo a Dª Maria de olhos postos no fim da rua à espera do seu menino.
Um abraço
António