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Chamava-se Brites de Almeida e era tão feia e tão matulona que chegou a fazer-se passar por homem. Na verdade, as profissões que teve pela vida fora foram quase todas masculinas, já que, logo em criança, repudiou a sua condição de mulher.
Parece que nasceu em Faro. Os pais eram gente muito pobre e humilde que vivia de uma pequena taberna.
Desde miúda, Brite revelou-se corpulenta e viva. Era ossuda e muito feia, com os seus cabelos crespos, o nariz adunco e uma boca excessivamente rasgada. Os pais exultaram com o seu nascimento, porque o aspecto forte da criança os levou a crer que tinham ali uma rapariga de trabalho, tanto mais que trazia seis dedos em cada mão.
Mas os pobres enganaram-se! Brites mostrou-se logo na infância desordeira e destemida, preferindo mil vezes andar à pancada com a miudagem e vagabundear pelas redondezas do que ajudar os pobres pais a mudar as pipas e a servir canecas de vinho aos clientes. Enfim, amargurou-lhes a vida!
Teria uns vinte e seis anos quando ficou órfã. Isso não a ralou grande coisa, porque lhe deu a possibilidade de ser senhora absoluta de si, sem recriminações. Vendeu, então, os parcos bens que lhe tinham ficado dos pais, que incluíam uma casita em Loulé, comprou gado e partiu. Andou de vila em vila, de feira em feira.
Pelos caminhos conviveu com toda a casta de vagabundos, desde almocreves e soldados a frades e pedintes. Quando calhava dormia a céu aberto, comia pão com azeitonas. Adestrava-se no manejo das armas, aprendeu a esgrimir e a utilizar o pau; meteu-se em bulhas e nunca deixou sem resposta uma provocação.
De tudo isto resultou uma larga fama de valentaça. Apesar disso, certo soldado alentejano, atraído pela fama de Brites, que corria já todo o Sul do País, procurou-a e propôs-lhe casamento. Ela porém, que não estava nada interessada em perder a sua adorada independência e que não era lá muito inclinada a sentimentalismos, tanto ouviu que acabou por anuir com uma condição: lutarem antes do casamento!
E a briga foi de tal ordem que o soldado acabou estirado no chão, ferido de morte. Ao ver o estado em que pusera o «noivo», Brites montou a primeira mula que achou à mão e fugiu com medo da justiça.
Dirigiu-se a Faro e daí embarcou para Espanha. Não chegou contudo, ao reino vizinho, porque o barco em que seguia foi abordado por piratas mouros, que a levaram para a Mauritânia, onde foi vendida como escrava.
Adquiriu-a um senhor que já tinha dois outros escravos portugueses e Brites não descansou enquanto não achou meio de fugir. Para isso combinaram todos três matar o seu senhor e, na primeira oportunidade, cravaram-lhe uma adaga no peito e fugiram.
Embarcaram com destino a Portugal, mas a viagem foi difícil: um enorme temporal encapelou o mar e enovelou o vento. O barco rolou ao Deus-dará dias e dias, sem timoneiro que lhe valesse, velas rotas, mastro quebrado. Por fim, por um acaso, deu à costa, na Ericeira.
Brites, que se julgava procurada pela justiça real ainda por causa da luta com o soldado alentejano, enfrentando a sua necessidade de sobrevivência, vestiu-se de homem e cortou os cabelos. A corpulência e aspecto masculino, proporcionaram-lhe a oportunidade de exercer o ofício de almocreve, ofício que bem conhecia dos seus tempos de vanguarda, ofício que lhe possibilitava a combinação de um modus vivendi que lhe agradava de sobremaneira. Assim, enquanto lhe apeteceu e agradou, viveu a vida agitada e desbragada a que se habituara nas terras do sul.
Um dia, porém, farta daquele ofício e da terra, partiu. Passava por Aljubarrota quando ouviu dizer na taberna que a padeira da terra necessitava de ajudante. Aceitou o lugar e, tempos depois, acabou sendo dona do negócio, por morte da patroa. Diz-se que por ali se fixou até ao fim dos seus dias, acabando casada com um honesto lavrador – certamente da sua força, que de outro modo não podia ser.
Em Aljubarrota era conhecida como a Brites Pesqueira, provavelmente por se saber que da Ericeira chegara. Em Aljubarrota amanheceu o dia 14 de Agosto de 1385. Até ela chegavam os clamores da batalha, o ruído do terçar das armas, os gritos surdos dos moribundos e os relinchos dos cavalos enlouquecidos pelo cheiro do sangue e pelo barulho da refrega. Não pôde resistir. Pegou na primeira arma que achou, esquecida no solo por um fugitivo, e juntou-se à hoste dos portugueses que tentava expulsar o invasor.
Derrotados os castelhanos, voltou para casa cansada, coberta de farrapos manchados, mais desgrenhada que nunca mas com uma intensa sensação de leveza. Mal entrou pressentiu que qualquer coisa de anormal se passava e logo desconfiou ter-se ali escondido algum fugitivo castelhano. Intrigou-a a porta do forno fechada e correu a abri-la.
Espantada, achou lá dentro sete castelhanos, apavorados. Intimidou-os a sair, mas como, a coberto do pânico, os homens fingissem dormir, Brites pegou na pá do seu ofício e tanto chuçou para dentro que os desgraçados não resistiram aos golpes e morreram.
Depois disto, numa excitação colectiva, provocada por um exacerbado nacionalismo e pelas circunstâncias de guerra aberta que se vivera nesse dia, Brites tomou o comando de um grupo de mulheres da povoação e partiu à cata dos foragidos, que se sabia estarem escondidos pela região, perseguindo-os sem quartel.
Diz a lenda que o resto da vida de Brites de Almeida foi calma e harmoniosa, casada com o seu lavrador. Contudo, o feito daquele dia nunca mais se apagou da memória dos Portugueses e, apesar da barbárie do acto em si, acabou por tornar-se como que um símbolo da independência do Reino.
Durante anos, a pá, que a tradição conta ser ainda a mesma, foi religiosamente guardada como bandeira de Aljubarrota. Quando sob o domínio espanhol dos Filipes, foi escondida dentro de uma parede, donde só foi retirada depois da aclamação de D. João IV, em 1640.
Durante séculos, no dia 14 de Agosto, nas comemorações da batalha, aquela pá era levada em procissão e nunca passou nenhuma personalidade nacional em Aljubarrota que lhe não fosse mostrado aquele famigerado instrumento.
* * Texto e Fotos da Net
António Inglês
7 comentários:
Olá António! Obrigada pelas visitas e o carinho de sempre...as coisas externamente não mudaram, nós mudamos e acredito que, eu, a cada dia mais...espero que para melhor...
Adorei sua postagem, tenho a sensação de que de tempos em tempos alguém nasce predestinada a grandes feitos...algumas moças ao se verem fortes, não tão bonitas poderiam pensar que estavam predestinadas a ficarem só, que sua condição não as favorece...não foi o caso da Brites...desde cedo nascera para uma grande batalha da qual não fugiu e para a qual não se fez de rogada...uma mulher forte sem dúvida. Como sempre aprendo muito contigo...Um beijo!
Geo
Esta lenda é uma delícia.
Conheço-a desde pequenina (não fosse eu daí do distrito e o meu avô padeiro...)
Mas tem sempre uma magia especial quando a leio...
Obrigada, António
Beijinhos
António, Amigo Querido
Esta lenda, da minha conterrânea algarvia, de Faro ou Loulé, continua por prová-lo, faz parte do que perdurou, na tradição oral, dos tempos em que castelhanos e portugueses se degladiavam pela independência do território português posta em perigo após a morte de D. Fernando.
Mulher valente, destemida, consta que matou alguns castelhanos que encontrou refugiados no forno onde cozia o pão. Ele há com cada portuguesa!
Beijinhos mil
Bem hajas, Tó!
Adoro lendas, e essa me saiu melhor do que encomenda.
Adoro mulheres fortes que encaram a vida, sem choromingar, sem esperar por ninguém.
Obrigada por passar sempre no meu blog. Sua seriedade seus comentários, sua postura enriquecem qualquer blog.
Com Carinho,
Dalinha
Oh António isto é transmissão de pensamentos. Ainda hoje pensei nesta muher!
Olá
Adorei ler a história da padeira de Aljubarrota, pois só conhecia mesmo a parte em que ela " deu cabo " dos castelhanos com a pá do forno.
Vê-se que desde cedo já era uma mulher valente!
Desejo tudo de bom e beijos estrelados como não podia deixar de ser...
Ora bem amigo aqui está uma lenda que me surpreendeu. Porque sempre ouvi falar da padeira de Aljubarrota, mas não conhecia a lenda e não me passava pela cabeça que fosse uma personagem tão forte.
Um abraço
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