quarta-feira, 14 de novembro de 2007

O MEU AMIGO ZÉ JOÃO

Rua principal da aldeia

Quando era garoto e passava as férias em casa da minha avó paterna, aqui bem no coração do Ribatejo, vivia em frente de nossa casa uma família de poucos recursos, das muitas que povoavam a aldeia. Lá viviam pai, mãe e dois filhos, o Zé João e a Graça.

Ele era o meu companheiro de brincadeiras nos poucos momentos que lhe restavam do seu trabalho no campo.

Pôr o pequeno rebanho de ovelhas, pertença da família, no pasto, era uma das suas responsabilidades.

Ajudava o pai, um pobre trabalhador rural, que de sol a sol vergava o corpo em direcção à terra a quem tratava por tu.

Ao Zé João, era vê-lo de manhã cedo, atrás do pai, sachola na mão e um cajado. À cintura um pequeno saco de pano com a merenda que a mãe lhes preparara de véspera. Por vezes o saco ia pendurado na ponta do cajado que ele punha ao ombro e lá seguíam os dois em direcção ao trabalho. Era assim todos os dias.

Quando ficava em casa, a mãe dizia-lhe a meio da manhã: Zé João vai levar a merenda "ó tê pai". E lá ia satisfeito como se estivesse a fazer a coisa que mais gostava na vida.

À tardinha, no regresso da "jorna", eu esperava-o sentado na soleira do portão da casa da minha avó.

Zé João!!! gritava-lhe eu, anda pá, anda brincar. E aquele menino homem, sempre com a mesma roupa vestida, acastanhada pela cor da terra, de botas largas e desabotoadas, sacudia das calças o pó, e quando entrava no meu quintal, os seus olhos brilhavam como se estivesse a entrar no paraíso.

Numa oliveira de certa idade, um baloiço feito por meu pai era o nosso melhor brinquedo. Uma velha corda, bem grossa, pendurada num ramo que parecia estar ali de propósito e como assento servia uma saca de serapilheira dobrada para não aleijar o rabo.

Era assim que brincávamos. Foi assim que brincámos anos a fio. De livros, nem vê-los, nem deles queria ouvir falar. Os pais também nunca viram uma letra e ele seguía as pisadas do progenitor, cujo sonho era apenas ganhar o sustento para a família. O Zé João, nunca fez outra coisa na vida, e nem mesmo tendo-me como companheiro, ele se interessou pelos livros.

Luz eléctrica naquela casa, nunca houve, nem mesmo quando ela chegou à aldeia. Dizia o pai do Zé João: para que precisamos nós da luz? Ela foge por entre as telhas...

Água canalizada nem pouco mais ou menos. Era ele Zé João quem tinha mais essa responsabilidade de ir buscar uma bilha de água à pequena bica que existia no meio da aldeia, uma, duas vezes, as que fossem precisas até encher uma talha que tinham na rudimentar mas acolhedora cozinha.

O chão da casa era de terra batida e o frio no Inverno era o companheiro de todas as noites.

Roupa era pouca e era a minha mãe, quem ao longo do ano, lhes dava as nossas já um pouco usadas. Muitas vezes nem serviam, mas a mãe do Zé João nada recusava e depressa as ajustava ao corpo dos filhos.

No Natal, bens alimentares e roupa nova eram as nossas prendas. Era assim que aquela gente se via na obrigação de deitar um olhinho aos meus avós.

Deus dá o frio conforme a roupa e é verdade, por isso raramente os ouvi queixarem-se dos maus tratos da vida.

A irmã do Zé João, ajudava a mãe nas lides de casa, mas de escola nem falar. Engordou a Graça, e muito. Não foi por isso que deixou de casar e ter filhos.

O Zé João, meu grande amigo de brincadeiras, nunca saiu da aldeia, acabando por se juntar com uma pequena da terra e vivem agora, numa minúscula casa no meio da serra, com um filho, de onde sai para trabalhar todos os dias, montado na sua velha bicicleta. A roupa que veste não é a mesma, mas o estilo mantém-se.

De um pequeno quintal, muito pequeno mesmo, tira umas batatitas que semeia todos os anos. Umas couves compõem o resto. A casa nunca lá entrei, mas iria jurar que não andaria muito longe da casa dos pais, que ficou para a irmã Graça, de onde ela nunca saiu e onde vive com o filho e o marido que lhe arranjou a velha casita e dela fazem o seu palácio.

O Zé João trabalha no campo, como o pai, e o filho, mesmo em pleno século XXI é bem capaz de não conhecer uma letra também. Está velho e cansado, e mesmo sendo da minha idade, parece ter mais uns bons aninhos em cima, que a vida vai deixando as suas marcas.

Vejo-o algumas vezes, raramente, quando lá vou à terra, e quando me vê e os copitos não lhe perturbam a visão e o equilíbrio, manda-me uma aceno e pergunta-me:

É Tó tás bummmm? Estim’ in ver-te home?

Assim mesmo, não a falar, cantando bem à moda da aldeia, que tem hoje tudo a que tem direito: estradas e caminhos alcatroados, luz eléctrica em toda a aldeia, água canalizada, Capela e novos acessos à estrada nacional que liga Rio Maior a Santarém.

O meu quintal ainda lá está. Continua nosso e o velho baloiço continua pendurado no mesmo tronco de oliveira que parece se vai mantendo ali de propósito, à espera que voltemos a ser meninos.

José Gonçalves

20 comentários:

Elvira Carvalho disse...

Acabei de chegar da Sophiamar onde me foi dado ler uma bela história do pastor Marcelino, e chego aqui e você presentei-a-me com esta linda história onde me senti como se estivesse lá à beira do velho baloiço olhando os dois.
Gostei muito. Parabéns.
Um abraço

Anónimo disse...

Vou tentar pela 2ª vez dizer que gostei do texto e que desejo que tudo esteja bem com o teu Pedro.
Convido-te a ires passear ao Minho, através de
http://ourocru.spaces.live.com/
Depois me dirás se foi feita justiça áquela linda região.
Abraços.

SÃO

amigona avó e a neta princesa disse...

Lindo Zé! Deixei-te uma flor no meu cantinho...beijo, amiga...

Isamar disse...

Uma história lindíssima! Tiveste uma infância muito semelhante à minha. Também eu passava férias no sítio onde nasci, em casa dos avós, mesmo à beira da estrada nacional nº2 que liga Faro a Lisboa. A propriedade, rodeada por um muro alto , tem, junto da eira, uma azinheira centenária onde era colocado um baloiço, feito com um baraço grosso e um pedaço de madeira que nos servia de assento.Eu brincava com a Maria da Luz e a Maria joão. Ambas ficaram pela 4ªclasse mas estão bem na vida. Raramente faço esta revelação, mas aproveito para a fazer agora,é que também eu tenho sangue ribatejano.Os meus bisavós paternos, Catarina Rita e Manuel, eram naturais de Coruche e creio que ainda tenho família por essas terras.Mas, voltando à tua história, achei-a muito bem escrita, testemunhando minuciosamente a vida rural desses tempos que, nalguns casos, continua semelhante nos dias de hoje.O Amigo Zé João e o Marcelino envelheceram precocemente ao contrário do que devia acontecer a quem labuta arduamente para nos dar o pão. Vida dura esta do campo que tantas memórias nos deixou.
A tua história trouxe-me à memória outra que brevemente contarei.
Noite serena aí para casa.
beijinhossss

António Inglês disse...

Elvira

É verdade. O velho baloiço ainda lá está intacto. Tem em vez da serapilheira uma tábua que já nem sei se ainda é a mesma que depois lá pusemos.
Um abraço
José Gonçalves

António Inglês disse...

São

Obrigado por perguntares pelo meu Pedro que já está bem.
Passei pelo ourocru e disso já te fui dar testemunho. Mas desde já te digo que isto não se faz aos amigos.
Quanto à justiça, ela foi feita sim e em pormenor.
Confesso que sempre que lá estou,não lanço os olhos tão profundamente, mas penso que conheço canto por canto de olhos fechados.
Aquele cais onde tiras-te duas das fotos, foi o local onde embarcámos este verão para um "pic-nic" numa das ilhas que está no meio do rio Minho e é pertença de um amigo.
Um abraço
José Gonçalves

António Inglês disse...

Amigona avó...

Obrigado pelas palavras amiga e também pela linda rosa que me ofereces-te. Já está em lugar de destaque neste meu canto, mas irá ficar ainda mais na próxima postagem.
Um beijinho
José Gonçalves

António Inglês disse...

Sophiamar

A casa de meus avós também tinha muros altos. Ao lado daquele baloiço, um palanque de madeira tosco, com uns degraus mal concebidos, servia de poleiro a minha avó que dali espreitava quem lhe batia ao portão, sem ter necessidade de o abrir.
O meu amigo Zé João, não o vejo há muito, mas foi grande companheiro de mil e uma aventuras por aquelas terras. Pescávamos e nadávamos no rio que atravessava o casal.
Aqueles campos, tinham e têm muita vinha e por lá passei grande parte das minhas férias que repartia pelo Minho.
Algumas outras histórias teria para contar, mas não são muitas.
Chego a ter um certo acanhamento pois tive uma infância sem sobressaltos e nada me faltava. Nunca tive culpa disso. Meus pais partiram para Lisboa em busca de sustento e a vida acabou por lhes sorrir. Depois de ler vários testemunhos de muitos dos amigos que andam por aqui, creio que talvez tenha sido um privilegiado.
O Zé João envelheceu precocemente como dizes, mas não foi ele, foi a vida que lhe passou à frente. Os olhos continuam os mesmos, e quando nos revemos, volta-lhes o brilho de antigamente. O sorriso continua intacto por entre as rugas que lhe marcam o rosto marcado pela rudeza de uma vida sempre agarrado à enxada e sem grandes ambições.
Outros tempos.
Um beijinho
José Gonçalves

Belisa disse...

Recordações que descreves muito bem e que me encanta de ler.
Ás vezes penso, como serão as recordações daqui a uns anos?
As crianças de agora só vivem rodeadas de tecnologia!

beijos estrelados

Maria disse...

Que estória bonita nos deixaste aqui, Amigo.
Fizeste-me lembrar um baloiço parecido, também de corda grossa, mas com chão de cimento. Estás a ver no que dava....
... ainda hoje tenho cicatrizes no couro cabeludo...
Obrigada

Abraço

António Inglês disse...

Belisa

Tens toda a razão. A juventude actual vive rodeada de tecnologia mesmo.
No futuro as suas recordações serão diferentes, como diferente é a vida actual.
Hoje vive-se a correr. A maioria das pessoas trabalha, quer marido quer mulher, e os avós foram sendo substituídos por infantários e creches. Deixaram de existir as referências que eram as casas dos nossos avós, onde éramos entregues enquanto se trabalhava.
Nos dias actuais nada disto acontece.
Mas os homens de amanhã saberão encontrar as suas próprias memórias, disso estou certo, não serão é as mesmas de antigamente.
Um beijinho com milhões de estrelas
para ti.
José Gonçalves

António Inglês disse...

Olá Maria

Imagino as cicatrizes pois também tenho algumas.
Acho que quase todos nós, da minha geração claro, tivemos um baloiço destes na infância e em casa dos avós, local de referência e normalmente na província.
Como digo no comentário anterior à Belisa, nos dias actuais, os avós foram sendo substituídos pelos infantários e pelas creches.
Vai faltar à juventude actual, o cheirinho da lareira que as casas dos nossos avós sempre nos deixaram.
é a evolução da espécie. Será?
Um abraço
José Gonçalves

Maria Faia disse...

Ontem passei pela Sphiamar e pela Elvira. Ambas me deliciaram com as suas narrativas, doces, simples e afectuosas de tempos idos, já vividos, aqueles que nos fazem ser gente.
Hoje, chego aqui e, mais uma sentida história de vida e carinhosa lembrança de infância.
Amigo José, a história que nos conta é a prova vivida de que para a Amizade não há fronteiras, sejam elas de que natureza forem. É talvez o sentimento maior, aquele que nos acompanha, acolhe e alegra a vida inteira.
Obrigado por ser amigo do Zé João.
Obrigado por ser meu amigo.

Beijo,
Maria Faia

avelaneiraflorida disse...

Amigo José Gonçalves,
Onde estão os amigos de Infância????
Vamo-nos perdendo pela vida...
"Brigados" por este post!!!!
Fico a pensar em alguns doa meus amigos e amigas...

UMA BOA NOITE!!!!!
BJKs

António Inglês disse...

Maria Faia

As suas palavras envaidecem-me. Eu sempre fui assim, mesmo vivendo em Lisboa, tinha os meus grandes amigos ali naquela aldeia e na outra lá do Minho.
Tenho mais algumas que talvez me vão chegando à memória.
A ver vamos se as saberei contar.
Um grande abraço deste seu amigo pesado mas sincero.
José Gonçalves

António Inglês disse...

Avelaneiraflorida

Dos meus amigos de infância, sei de alguns, com outros ainda me dou, mas existem uns quantos a quem até tratava como se fossem meus irmãos e hoje nem nos falamos.
É a lei da vida.
Um abraço
José Gonçalves

Branca disse...

Bela história da sua infância!As pessoas da nossa geração, porque pressinto que andamos mais ou menos pelas mesmas idades, têm recordações muito semelhantes.Eram outros tempos, tempos de grandes contrastes.
Hoje tinha jurado que ia pôr em dia a leitura e comentário das suas publicações e foram muitas esta semana! Eu fui passando, mas como sabe, com problemas de saúde na família não houve tanta disponibilidade.
Não me leve a mal, não é sinal de esquecimento. A prova é que estou aqui a fazer um serão especial para estar com todos os meus amigos.Mas, é demasiado tarde e agora vou mesmo nanar. Amanhã, que já é hoje continuo.
Um abraço.

António Inglês disse...

Brancamar

Não se preocupe com o facto de não ter tempo para vir por aqui com frequência. Eu, como estou mais ou menos "desactivado" profissionalmente, tenho tempo de sobra, daí a razão de fazer muitas postagenS.
Importante é mesmo a nossa vida pessoal, por isso aproveito para lhe perguntar pela mãe?
Espero que tudo esteja já no bom caminho e com solução à vista.
Do fundo do coração.
Desejo-lhe um óptimo fim de semana
José Gonçalves

Branca disse...

Respondendo à sua pergunta sobre a mãe, vou agora para o hospital. Está a preparar-se para pôr na aorta uma válvula biológica.A que tem mostra uma estnose e apesar de ter um coração bom graças a Deus e parece que as artárias também boas, tem esse problema, que pode ser um risco e não convém deixar para depois.Tenho fé que vai correr tudo bem.
Agradeço o cuidado.
Bom fim de semana

António Inglês disse...

Brancamar

Não há mãe como a nossa, por isso cuide bem da sua.
Sei, porque tenho um amigo especial lá em cima, que tudo vai correr lindamente.
Além disso, estou também eu aqui a fazer uma força danada e o meu esforço normalmente é coroado de êxito.
Um excelente domingo dentro do possível, e caso necessite de algo, não hesite. Os amigos são para todas as alturas.
José Gonçalves