segunda-feira, 27 de outubro de 2008

O VELHO DA HORTA


IVª PARTE

Entra Branca Gil, Alcoviteira, e diz: Mantenha Deus vossa Mercê.

Velho: Olá! Venhais em boa hora! Ah! Santa Maria! Senhora. Como logo Deus provê!

Alcoviteira: Certo, oh fadas! Mas venho por misturadas, e muito depressa ainda.

Velho: Misturadas preparadas, que hão de fazer bem guisadas vossa vinda! Justamente nestes dias, em tempo contra a razão, veio amor, sem intenção, e fez de mim outro Macias tão penado, que de muito namorado creio que culpareis porque tomei tal cuidado; e do Velho destampado zombareis.

Alcoviteira: Mas, antes, senhor agora na velhice anda o amor; o de idade de amador por acaso se namora; e na corte nenhum mancebo de sorte não ama como soía. Tudo vai em zombaria! Nunca morrem desta morte nenhum dia. E folgo ora de ver vossa mercê namorado, que o homem bem criado até à morte o há de ser, por direito. Não por modo contrafeito, mas firme, sem ir atrás, que a todo homem perfeito mandou Deus no seu preceito: amarás.

Velho: Isso é o que sempre brado, Branca Gil, e não me vai, que eu não daria um real por homem desnamorado. Porém, amiga, se nesta minha fadiga vós não sois medianeira, não sei que maneira siga, nem que faça, nem que diga, nem que queira.

Alcoviteira: Ando agora tão ditosa (louvores a Virgem Maria!), que logro mais do que queria pela minha vida e vossa. De antemão, faço uma esconjuração c’um dente de negra morta antes que entre pela porta qualquer duro coração que a exorta.

Velho: Dizede-me: quem é ela?

Alcoviteira: Vive junto com a Sé. Já! Já! Já! Bem sei quem é! É bonita como estrela, uma rosinha de abril, uma frescura de maio, tão manhosa, tão sutil!...

Velho: Acudi-me Branca Gil, que desmaio.



Esmorece o Velho e a Alcoviteira começa a ladainha:

Ó precioso Santo Areliano, mártir bem-aventurado,

Tu que foste marteirado neste mundo cento e um ano;

Ó São Garcia Moniz, tu que hoje em dia

Fazes milagres dobrados, dá-lhe esforço e alegria,

Pois que és da companhia dos penados!

Ó Apóstolo São João Fogaça, tu que sabes a verdade,

Pela tua piedade, que tanto mal não se faça!

Ó Senhor Tristão da Cunha, confessor,

Ó mártir Simão de Sousa, pelo vosso santo amor.

Livrai o Velho pecador de tal cousa!

Ó Santo Martim Afonso de Melo, tão namorado.

Dá remédio a este coitado, e eu te direi um responso com devoção!

Eu prometo uma oração, todo dia, em quatro meses,

Por que lhe deis força, então, meu senhor São Dom João de Meneses!

Ó mártir Santo Amador Gonçalo da Silva, vós, que sois o melhor de nós,

Porfioso em amador tão despachado, chamai o martirizado

Dom Jorge de Eça a conselho!

Dois casados num cuidado, socorrei a este coitado deste Velho!

Arcanjo São Comendador Mor de Avis, mui inflamado,

Que antes que fosseis nado, fostes santo no amor!

E não fique o precioso Dom Anrique, outro Mor de Santiago;

Socorrei-lhe muito a pique, antes que demo repique com tal pago.

Glorioso São Dom Martinho, apóstolo e Evangelista, passai o fato em revista,

Porque leva mau caminho, e daí-lhe espírito!

Ó Santo Barão de Alvito, Serafim do deus Cupido, consolai o Velho aflito,

Porque, inda que contrito, vai perdido!

Todos santos marteirados, socorrei ao marteirado, que morre de namorado,

Pois morreis de namorados.

Para o livrar, as virgens quero chamar,

Que lhe queiram socorrer, ajudar e consolar,

Que está já para acabar de morrer.

Ó Santa Dona Maria Anriques tão preciosa,

Queirais-lhe ser piedosa, por vossa santa alegria!

E vossa vista, que todo o mundo conquista,

Esforce seu coração, porque à sua dor resista,

Por vossa graça e benquista condição.

Ó Santa Dona Joana de Mendonça, tão fermosa,

Preciosa e mui lustrosa mui querida e mui ufana!

Daí-lhe vida com outra santa escolhida que tenho in voluntas mea;

Seja de vós socorrida como de Deus foi ouvida a Cananea.

Ó Santa Dona Joana Manuel, pois que podeis, e sabeis, e mereceis.

Ser angélica e humana, socorrei!

E vós, senhora, por mercê, ó Santa Dona Maria de Calataúd,

Por que vossa perfeição lhe dê alegria.

Santa Dona Catarina de Figueiró, a Real,

Por vossa graça especial que os mais altos inclina!

E ajudará Santa Dona Beatriz de Sá:

Daí-lhe, senhora, conforto, porque está seu corpo já quase morto.

Santa Dona Beatriz da Silva, que sois aquela mais estrela que donzela,

Como todo o mundo diz!

E vós, sentida Santa Dona Margarida de Sousa, lhe socorrei,

Se lhe puderdes dar vida, porque está já de partida sem porquê!

Santa Dona Violante de Lima, de grande estima,

Mui subida, muito acima de estimar nenhum galante!

Peço-vos eu, e a Dona Isabel de Abreu, co siso que Deus vos deu,

Que não morra de sandeu em tal idade!...

Ó Santa Dona Maria de Ataíde, fresca rosa, nascida em hora ditosa,

Quando Júpiter se ria!

E, se ajudar Santa Dona Ana, sem par de, Eça, bem aventurada,

Podei-lo ressuscitar, que sua vida vejo estar desesperada.

Santas virgens, conservadas em mui santo e limpo estado,

Socorrei ao namorado, que vos vejais namoradas!

Velho:

Óh! Coitado!

Ai triste desatinado!

Ainda torno a viver?

Cuidei que já era livrado.

Alcoviteira: Que esforço de namorado e que prazer! Que hora foi aquela!

Velho: Que remédio me dais vós?

Alcoviteira: Vivereis, prazendo a Deus, e casar-vos-ei com ela.

Velho: É vento isso!

Alcoviteira: Assim seja o paraíso. Que isso não é tão extremo! Não curedes vós de riso, que eu farei tão de improviso como o demo. E também doutra maneira se eu me quiser trabalhar.

Velho: Ide-lhe, logo, falar e fazei com que me queira, pois pereço; e dizei-lhe que lhe peço se lembre que tal fiquei estimado em pouco preço, e, se tanto mal mereço, não no sei! E, se tenho esta vontade, não deve ela s’agastar; antes deve de folgar ver-nos morto nesta idade. E, se reclama que sendo tão linda dama por ser Velho me aborrece, dizei-lhe: é um mal quem desama porque minh’alma que a ama não envelhece.

Alcoviteira: Sus! Nome de Jesus Cristo! Olhai-me pela cestinha.

Velho: Tornai logo, fada minha, que eu pagarei bem isto.



Vai-se a Alcoviteira, e fica o Velho tangendo e cantando a cantiga seguinte:

Pues tengo razón, señora,

Razón es que me laa oiga!

Vem a Alcoviteira e diz o Velho: Venhais em boa hora, amiga!

Alcoviteira: Já ela fica de bom jeito; mas, para isto andar direito, é razão que vo-lo diga: eu já, senhor meu, não posso, sem gastardes bem do vosso, vencer uma Moça tal.

Velho: Eu lhe pagarei em grosso.

Alcoviteira: Aí está o feito nosso, e não em al. Perca-se toda a fazenda, por salvardes vossa vida!

Velho: Seja ela disso servida, que escusada é mais contenda.

Alcoviteira: Deus vos ajude, e vos dê mais saúde, que assim o haveis de fazer, que viola nem alaúde nem quantos amores pude não quer ver. Falou-me lá num brial de seda e uns trocados...

Velho: Eis aqui trinta cruzados, Que lhe façam mui real!

Enquanto a Alcoviteira vai, Velho torna a prosseguir o seu cantar e tanger e, acabado, torna ela e diz: Está tão saudosa de vós que se perde a coitadinha! Há mister uma saiazinha e três onças de retroz.

Velho: Tomai.

Alcoviteira: A benção de vosso pai. (Bom namorado é o tal!) pois gastais, descansai. Namorados de al! Ai! Não valem real!Ui! Tal fora, se me fora! Sabeis vós que me esquecia? Uma amiga me vendia um broche de uma senhora. Com um rubi para o colo, de marfi, lavrado de mil lavores, por cem cruzados. Ei-los aí! Isto, má hora, isto sim são amores!

Vai-se o Velho torna a prosseguir a sua música e, acabada, torna a Alcoviteira e diz: Dei, má-hora, uma topada. Trago as sapatas rompidas destas vindas, destas idas, e enfim não ganho nada.

Velho: Eis aqui dez cruzados para ti.

Alcoviteira: Começo com boa estréia!

Continua...


1 comentário:

Elvira Carvalho disse...

Como decerto compreenderá não vou ler o post.
Vim deixar a informação de que estou a recuperar muito bem (fui hoje vista pelo cirurgião) e vou tirar os pontos, na próxima Quarta-feira.
Quero também agradecer a sua atenção, e o seu carinho.
Um abraço do tamanho do mundo.