terça-feira, 30 de outubro de 2007

O BOSS


Durante os últimos anos, sempre que vou a Moledo, fico em casa de minha prima. Não é bem uma prima, é um pouco mais que isso. É como uma irmã. Ela e o marido. São dois “amigos do peito” que mesmo longe, estão presentes nas nossas vidas.

A casa deles é uma espécie de... refúgio para todos nós, tal a sintonia que sentimos sempre que nos reunimos à noite em redor da televisão. Sim porque hoje em dia, as reuniões familiares são em torno da televisão, sem diálogo, sem convívio, apenas televisão, já longe dos tempos em que era à volta da lareira que todos se juntavam. Outros tempos.

Ali em casa porém, mesmo não privilegiando a lareira, e dando ao sector feminino a prioridade para as telenovelas, vamos encontrando formas de conversar e conviver entre as cenas de cada capítulo.

É acolhedora a casa dos meus primos. É grande, o que nem sempre é sinónimo de acolhedor. Cá fora o jardim mistura-se com inúmeras árvores de fruto, religiosamente tratadas pelo pai da minha prima e beneficiando do óptimo clima que os favorece.

Ao canto do jardim... bem ao canto está o meu senão. Tudo na vida tem um senão. Um enorme e forte canil, protege um corpulento Rottweiler preto, de postura arrogante e ameaçadora.

Ao longo destes anos todos e desde que aquela personagem foi para lá viver, as minhas estadias têm sido sempre super controladas evitando encontros pouco amigáveis entre nós. O respeito tem sido de parte a parte e acho que o Boss, de seu nome, aprendeu depressa que não me tinha caído no goto. Os olhares e as expressões que me dedicava, também me sugeriam que esta "atracção fatal" era mútua.

Pois da última vez que lá estive quinze maravilhosos dias, o meu “amigo” Boss, modificou a sua atitude para comigo. Tornou-se acessível e menos agressivo, tendo mesmo chegado perto de mim, como que pedindo que o afagasse ou lhe dirigisse uma palavra de amizade ou um pedido de tréguas. O olhar tornou-se terrivelmente meigo e pensei com os meus botões que tinha ganho esta guerra fria entre nós. Não foram poucas as vezes que durante esses dias me vi a fazer festas no Boss, como se isso fosse afinal o que sempre tínhamos feito, desde que nos conhecemos.

Confesso que mesmo à distância, tinha uma certa afeição àquele corpulento exemplar canino, que fazia já parte da vida familiar dos meus primos, não obstante lhes ter chamado várias vezes a atenção para o facto de se constar que aquela raça de cães não era muito de fiar.

Foi neste clima de reconciliação entre nós que regressei a casa, elogiando para quem me queria ouvir, os dotes meigos do Boss e o olhar ternamente carregado e arrependido que me deitou durante a nossa estadia. E não pensem que esta reconciliação foi apenas entre mim e o Boss, não senhor. Também a minha mulher, salva em tempos por uma intervenção rápida do meu primo, fez as pazes com o Boss.

Anteontem meus amigos, perto das oito horas da noite, o telefone tocou. Era o meu primo. Pedia-me para conversar com a mulher e lhe dar algum alento. O Boss falecera, vitima de doença incurável, e ela precisava de mais algum conforto.

A notícia caiu como uma bomba. Para lá de toda a atribulada relação, tínhamos ganho uma afeição ao Boss, baseada no respeito mas também no hábito de o ver a guardar a casa dos meus primos. Quase sempre à solta pelo jardim.

Julgo mesmo que só ia para o canil quando nós lá estávamos. Talvez fosse essa a mágoa do Boss e a pouca vontade que tinha de nos ver por lá.

Após a notícia, estive seguramente uns bons dez a quinze minutos em silêncio. Não consegui articular palavra.

É que me lembrei da nossa reconciliação, da ternura e do afecto que o Boss nos quis oferecer, quem sabe adivinhando seria a última vez. O olhar meigo e terno que nos lançava, diz-me agora o coração, era tão só uma despedida, e os amigos não se despedem de costas voltadas.

Adeus Boss, parte em paz. Quem fica em sobressalto sou eu por não te ter entendido mais cedo.
Leva contigo o osso da amizade que afinal nos unia, porque quem sente assim só pode ser um amigo.

José Gonçalves


10 comentários:

Elvira Carvalho disse...

Comovente a sua estória do Boss.
Minha avó sempre dizia que os animais sabiam primeiro que nós quando alguma coisa não estava bem.
Talvez tenha sido exactamente por isso que o Boss se despediu de si.
Um abraço

São disse...

Que coincidência! Completaram-se em 29/10/2007 sete anos sobre a morte da Laís, cadela dálmata que me alegrou a vida durante onze anos e cuja morte pranteei muito, até porque a casa ficou, de repente, ainda mais vazia. Por isso, compreendo os seus primos...a quem envio um abraço.
Vou-lhe fazer uma proposta "indecente": não nos poderemos tratar por tu, até porque temos a mesma idade ( como já notou, aliás)?
Saudações!

António Inglês disse...

Elvira

Também acho que foi o que aconteceu. Mesmo não tendo sido uma relação muito amigável, até à ultima vez que lá estivemos, acredito que ele estivesse habituado a nós.
Tinha deixado mesmo de nos ladrar como o fazia antigamente, só que foi sempre uma relação à distância, mais até por nós talvez que não soubemos (por medo claro) entender o Boss.
Enfim, os animais são assim e nós cá em casa somos uns tontinhos com animais.
Um abraço
José Gonçalves

António Inglês disse...

São

Obrigado pelo abraço enviado a meus primos que entregarei.
A TUA proposta está aceite desde já.
Reparei sim que somos da mesma idade, aliás no próximo dia 5 deste mês faço 58. Se Deus quiser.
Olha, e a proposta não foi nada indecente, foi antes pelo contrário sincera.
Um abraço PARA TI.
José Gonçalves

Anónimo disse...

Meu Caro amigo,
Como sabe também eu conhecia o Boss e tinha a mesma relação de medo/respeito por tão imponente figura. Tenho pena não ter tido essa aproximação de "despendida".
Eu também tinha um amigo de grande porte (Setter Irlandês) que era o primeiro a demonstrar alegria quando eu visitava a minha mãe ao fim-de-semana (vivo num apartamento e ele era inquilino da minha mãe).
A minha namorada tinha pavor de cães por mais pequenos que fossem, mas nunca teve do King porque embora grande, o King sempre demonstrou um grande carinho por ela, como que se conhecesse o ditado "os amigos dos meus amigos meus amigos são".
Infelizmente o King também nos deixou este ano.
Um grande abraço para si e para os seus primos, tudo gente do melhor que há ...
Paulo Fonseca

Isamar disse...

Parei a leitura. Recomecei. Os meus olhos encheram-se de lágrimas. Adoro animais. Tenho dois cães e tenho por eles uma afeição, creio, muito menor do que eles têm por mim. Eu acho que os meus cães estão em festa quando estou em casa. Mimam-me,beijam-me, lambem-me, saltam-me para o colo... e a cauda mostra, a toda a hora, o seu contentamento. Aqui à minha beira está, deitada, no sofá, uma cadela preta que foi uma paixão à primeira vista. Só daqui sairá quando eu desligar o computador.
Compreendo a tua tristeza e a desolação em que se encontram os teus familiares donos do Boss.
Também eu fiquei muito triste e por aqui irei ficar um pouco mais a olhar este rico Boss.
Beijinhossss

amigona avó e a neta princesa disse...

Meu querido amigo a comoção fez-me limpar uma "areiazita"!!!

O Boss saberá porque o sentiu que acabou por ganhar mais um amigo...
E quando parte um amigo dói sempre!
Beijo Zé e bom feriado...

António Inglês disse...

Olá Paulo

Ora viva meu amigo. Gosto em vê-lo por aqui.
É verdade, o Paulo também conhecia o Boss e sabe que aquilo que contei se traduz na realidade, pois eu tinha mesmo um respeitinho dos antigos.
Não sei se fiz algum comentário consigo sobre o Boss depois de lá termos estado a última vez, mas foi impressionante ver como o "nosso" amigo se relacionou connosco.
Cheguei a dizer aos meus primos que afinal, o "leão" se tinha transformado em "gato" tal a ternura com que o Boss nos tratou.
Foi tudo isso que me impressionou.
Os animais são de uma sensibilidade comovente.
Como sabe também conheci o King, mas esse nunca me transmitiu o medo que o Boss me transmitia.
Os meus primos estão por cá, creio que sabe, mas partem no domingo para cima. Dar-lhes-ei o seu abraço meu amigo Paulo.

António Inglês disse...

sophiamar

Pois minha amiga, isto ultimamente não anda muito do meu lado.
Mas as coisas hão-de mudar.
O Boss partiu.
Há uns tempos, fui com a minha mulher e o meu filho buscar uma cadela para o meu Jimmy. Acabámos por trazer uma rafeira lindíssima de cabelo comprido. Veio juntar-se aos outros que cá temos.
No dia seguinte de manhã a "Gisela" estava morta. Foi o fim cá em casa.
Enfim, habitua-mo-nos aos animais e depois é muito difícil quando partem.
Um abraço
José Gonçalves

António Inglês disse...

amigona avó e neta princesa

A mim restam-me o Jimmy, a Tita, a Licas, o Romeu, a Julieta, dois pombos e duas fracas.
Como vê, animais não me faltam.
No entanto o Boss, mesmo tendo uma relação meio difícil comigo, nunca deixou de ser nosso amigo.
E nós sabíamos disso, creio que quisemos todos marcar o nosso território.
Deixou-nos bastante abalados, por tudo o que aconteceu nos últimos tempos.
Foi um desgosto para nós e para meus primos, em especial para minha prima que ficou muito em baixo.
Um grande abraço
José Gonçalves