TENHO SAUDADES DE TI, LISBOA!
7h15m de um dia qualquer de Dezembro do ano de 1961. Os primeiros sinais da manhã eram dados por aquela senhora que silenciosa se aproximava do meu quarto, tentando que eu aproveitasse até ao último segundo o descanso de um sono retemperador.
- Tósinho, levanta-te filho que está na hora! Anda lá filho, acorda!
- Vou já mãe!
Respondia-lhe como se ela me estivesse a acordar naquele momento, mas a verdade é que a ouvira desde que se tinha levantado e trocado algumas palavras com o meu pai.
Pareciam-me de circunstância com algum arrufo à mistura, mas essa era a forma que aqueles dois encontravam para se entenderem. Foi assim toda uma santa vida e nunca se deram mal com isso. Muitas vezes, pareciam o gato e o rato, aparentavam indiferença e chegavam a não se falar, mas o amor estava... esteve sempre lá. Que o digam os últimos anos das suas vidas.
- Então filho, já viste as horas? Queres chegar atrasado?
- Vou já mãezinha!
Era o segundo aviso e eu esperava por entre lençóis, o terceiro que me servia normalmente de ponto de partida. Num gesto lento e demorado, abordava a casa de banho de olhos ainda fechados e assim entrava debaixo do chuveiro. As primeiras gotas ainda mornas chegavam para me acordar de vez. A partir daquele momento as coisas desenrolavam-se de forma mais ligeira e dali até estar pronto para sair para as aulas era um instante.
- Té logo Mãe!
- Que é lá isso? Então o pequeno almoço?
- Não tenho fome mãe e já estou atrasado!
- Isso não me interessa, eu chamei-te a tempo! Vá, tens ali na cozinha um copo de leite e um pão com manteiga! Mexe-te rapaz, anda!
Vencido mas não convencido, bebia num ápice o leite e o pão acompanhava-me até à rua e era comido pelo caminho.
Num passo apressado, descia a S. João de Deus até ao virar da esquina da Padre Manuel da Nóbrega, onde num último aceno me despedia de minha mãe que não largava a janela enquanto aquela não fosse dobrada. Adivinhava que muito depois disso ela ainda por lá estava rezando para que nada me acontecesse até ao regresso a casa depois das aulas. Sei que para ela o ficar ali era a certeza de que me protegia pelo caminho. Era assim com todos nós lá em casa.
Aquela avenida era feita num instante e depressa apanhava o eléctrico no Areeiro que me levaria até à Praça do Chile onde trocava por outro até ao Alto de São João. Oito tostões era o preço do bilhete. A Rua Lopes era feita de forma mais apressada porque ao fundo ela esperava-me nas suas botas brancas e livros debaixo do braço, encostadinhos ao peito. Um abraço sôfrego que embrulhava mil beijos, era dado entre muros altos de uma viela que nos resguardava de olhares indiscretos. Como se a despedida do dia anterior tivesse sido feita um século antes. E de mão dada até à Escola, lá íamos devagar, saboreando cada minuto e cada carícia que as mãos encontravam. Uma primeira paragem numa pequena tasca, onde comprava uns cigarritos avulso com os trocos que me ficavam do dia anterior, em que o percurso para o Liceu fora feito a pé propositadamente para que naquela manhã os pudesse comprar.
A segunda paragem era normalmente à porta da Patrício Prazeres numa despedida tão penosa e tão difícil que só era atenuada porque no primeiro intervalo eu lá estaria no pátio de olhos pregados no varandim das meninas, esperando ansioso pelo olhar da minha primeira namoradinha. Na época, os recreios eram diferenciados, os rapazes tinham o seu espaço separado do das raparigas. Outros tempos.
Mas as aulas do dia chegavam ao fim e o regresso a casa fazia-se de forma bem mais calma, de novo mãosinha dada com o namorico que me enchia de orgulho perante a rapaziada toda. Afinal a “garota” era um espanto e reconhecida por todos como uma das mais bonitas da Patrício Prazeres. A despedida era feita quase sempre no cimo da Rua Lopes, já no Alto de São João, ali em frente ao cemitério, onde tantas vezes entrámos para namorar sem receio das almas do outro mundo. Tinhamos mais medo das que nos podiam aparecer sem o desejarmos e era por entre os jazigos que muita vez passeámos sem nos darmos conta por onde andávamos. Nada importava bastando que estivessemos juntos e em segurança.
De novo o eléctrico até ao Chile e uma troca rápida por outro para me levar ao Areeiro num regresso alegre e bem disposto, carragadinho de saudades até ao dia seguinte. A Padre Manuel da Nóbrega e de novo a esquina com a São João de Deus. Num lançar rápido de olhar lá encontrava a minha Mãe na janela onde me deixara de manhã. Parecia que nunca de lá saíra à minha espera.
- Olá Mãe!
- Olá filho, correu tudo bem? Vens cheio de fome não?
O lanche estava já à minha espera e nem pensava em dizer que não, caso contrário havia sermão e missa cantada, e confesso que àquela hora a fome já apertava.
O jardim em frente a casa era por excelência o poiso da rapaziada da Praça onde morávamos. Jogos e treta compunham os fins de tarde até retornarmos ao lar.
A fome apertava mas ninguém comia naquela casa até o meu pai chegar. Era o patriarca e todos sabíamos que tinha de ser assim.
7h 15m de um dia qualquer de Dezembro de 1967. Os primeiros sinais da manhã eram os mesmo e a cena repetia-se vezes sem conta. Repetiu-se até aos 21 anos, idade com que casei e saí da casa paterna. A primeira namoradinha era já uma miragem e os meus horizontes tinham-se voltado para outros interesses que culminaram no enlace que me levou de casa de meus pais.
A Escola era outra, os amigos renovados, mas a liberdade embora pouca e controlada tinha aumentado. Já não parava no Jardim em frente a casa, ou raramente o fazia. O Trevi era o café que de entre muitos que existiam na Av. De Roma, escolhera para ponto de encontro nocturno. O Tutti Mundi, o Vává, a Suprema, o Luanda, a Capri, o Londres, a Mexicana eram percorridos como se isso fosse uma obrigação. Depois partíamos Lisboa dentro em busca de aventura, desde Alfama ao Bairro Alto, da Baixa ao Cais do Sodré. O cacau da Ribeira foi muita vez um último adeus à noite e era já manhã quando chegávamos a casa. Claro que isto não era todos os dias, que na maior parte deles tinha hora marcada para regressar a casa.
Uma vez por outra lá se organizava uma festa para dar asas ao companheirismo. Os bailaricos serviam às mil maravilhas para uns abracitos mais atrevidos com as raparigas.
Hoje, já não vivo na capital e a realidade é bem diferente da daqueles tempos. Não estou arrependido de ter vindo viver para a província, bem pelo contrário. Ganhei qualidade de vida e o stress só mesmo pelas dificuldades que a crise que se faz sentir por esse mundo fora nos provoca.
Fugi ao barulho, à correria, ao caos do trânsito, à poluição, às enchentes, às demoras, às filas intermináveis que me deixavam de rastos antes de começar a trabalhar, aos transportes públicos apinhados em horas de ponta, à vida selvagem a que a imensidão da cidade nos obrigava.
Hoje tudo é mais calmo, as correrias acabaram e só faço as que quero e me apetecem, o trânsito é bastante compassado, a poluição menos visivel, as enchentes são poucas, as demoras não se mostram tanto, as filas quase desapareceram. Os transportes públicos andam com os passageiros contados e quase todos se conhecem, a vida selvagem é-nos oferecida pelas muitas matas que nos envolvem e por onde passeamos.
Mesmo assim, tenho saudades de ti LISBOA! Tenho saudades da minha cidade, não a de hoje, mas daquela onde às oito horas da manhã, ao virar da esquina deitava um olhar de despedida a minha Mãe, num até logo cheio de fé e de alegria. Dessa Lisboa daquele tempo que não volta mais.
Tenho saudades dos Teatros de Revista no Parque Mayer, do piscar de olhos às coristas, das discotecas, da rambóia, do Cacau da Ribeira, das saídas às escondidas já depois de estarem todos a dormir, da janela da minha Mãe, dos sermões do meu Pai. Tenho saudades disso tudo, porque me fazem falta.
Tenho saudades de ti, LISBOA!
Fotos “surrupiadas” da Net
António Inglês